sábado, 3 de dezembro de 2011

Estudos Medievais

    acréscimo a este blog : comunico o lançamento do meu novo livro "Riqueza e Poder, a geoegologia", pela Quártica editora, em 2018, com uma palestra minha na internet que pode ser acessada pelo título do livro,  porém até agora a editora não o colocou nas páginas do site nem nos canais de venda da internet onde constam meus livros antes publicados: "O pós-moderno, poder, linguagem e história"; "Filosofia, Ceticismo, Religião, com um estudo sobre Diógenes Laércio", "contos do espelho" e "contos da musa irada";  ///                                                ///                                          em abril 2019
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DENUNCIE O FASCISMO BRASILEIRO QUE ESTÁ ATUANDO NAS INSTITUIÇÕES DE ESTADOS COMO RIO DE JANEIRO




  Estudos Medievais


                                                                                                        Eliane Colchete

            1)
                       Teocentrismo e humanismo
    
            
                                                                                        

            A via interior de Santo Agostinho tornou-se o caminho mesmo da feudalização. No recesso dos conventos, em que se desenvolve a ambiência própria do hino e da hagiografia, foi possível preservar os estudos em meio ao caos das duas invasões bárbaras, a do século IV e a dos séculos VIII e IX.
            Conforme observa Carpeaux, a segunda invasão bárbara, de húngaros e vikings, assinala mais profundamente o processo de interiorização com as poucas cidades sobreviventes subsistindo apenas como nomes de comarcas rurais, ao que se acrescentou o fechamento do comércio no Mediterrâneo pela expansão árabe.
           A reforma pedagógica de Alcuíno no século IX coincide com a iniciativa de Carlos Magno, correspondendo essa proto-renascença cultural ao projeto político de latinização dos povos germânicos. O antigo panteão em Roma torna-se nessa mesma época a Igreja de Santa Maria, em que se introduz a festa de Todos os Santos. Carpeaux vê nesse fato o nascimento da Europa, isto é, a sanção da unidade latina do Ocidente.
            Mas esse é também o momento em que o processo de interiorização mais se acentua, pois os conflitos não cessam com a conversão dos bárbaros. Com efeito, o elemento conflituoso não se limita ao que vem de fora, abrangendo também guerras entre feudos, corrupção administrativa eclesiástica, penúria generalizada. “Fehde” ou “feud” é o termo que designa o estado de guerra civil permanente e generalizada entre os "feudais", sintomaticamente não possuindo tradução neolatina.
          Assim, se o momento agostiniano marcava a ruptura com o cristianismo primitivo pela consolidação da igreja oficializada do Império, o cenário bucólico do Contra os Acadêmicos prefigura o que virá a ser a opção agrária da Igreja no feudalismo.
         Contudo, a reforma de Alcuíno não deixou de exercer um importante papel. Scot Erígena, atuando apenas alguns anos após a época da reforma, assinala já o início da Escolástica.
         Conforme Carpeaux, o século XI e o império dos três Otto marca a mudança. Mesmo com a grande agitação do ano mil, com todo tipo de exacerbação do tema apocalítico devido à transição do milênio, esse é o tempo de superação do caos social e de saneamento moral da igreja. Em Chatroux e Poitiers a guerra foi abolida. O convento de Cluny suplanta a anarquia pela regularidade da liturgia enquanto os cistercienses substituem a guerra pela rotina do trabalho. Se a patrística correspondeu ao momento de interiorização, a Escolástica é agora o período da expansão.
A igreja começa a urbanizar-se. Ao invés do convento ruralizado, os centros eclesiásticos tornam-se os bispados, e todo esse movimento de organização social, moralização e pacificação, conduz ao grande momento de Chartres, no século XII em que a Escolástica deverá produzir uma nova ambiência intelectual.
A história da recepção dos escritos aristotélicos converge com a história do que designarei renascimento filosófico do século XII. Ambas inter-relacionadas com a retomada do intercâmbio entre Ocidente e Oriente.
O percurso oriental não coincide a princípio com o do Ocidente, nem no plano político nem no filosófico. Observando o modo como o Islã se institucionaliza como religiosidade e relacionando-o à dominação militar que se segue à conquista de Síria, Egito, Pérsia e Espanha pelos árabes, é possível mostrar que não há aquela dobra teológica conceitual característica da dominação eclesiástica do catolicismo, isto é, do movimento próprio ao momento da ocidentalização.
Bréhier afirma assim que as controvérsias anti-heréticas não surgem aí, pois o monoteísmo islâmico é “sumário e simples como uma paisagem do deserto”, não acarretando questões como a trinitária ou cristológica. Não há, no Islã dessa época, poder espiritual que deva interpretar e dizer o dogma. O Corão deve ser auto-suficiente, pois o dogma resume-se na afirmação do Deus único, absolutamente simples e todo-poderoso.
O que libera uma especulação filosófica desenvolvendo-se independentemente de qualquer constrangimento institucional de tipo eclesiástico. Mas essa filosofia oriental vive uma situação bastante curiosa. É teologicamente inspirada, ainda que os problemas principais dessa teologia se limitem a duas questões, conforme Bréhier, a saber, as negações da multiplicidade de Deus e de qualquer outro poder. Mas as fontes de sua especulação são mais vastas do que as que, concomitantemente, nutrem o mundo ocidental, pois dos países conquistados recebe o influxo da literatura filosófica grega.
Os cristãos nestorianos desde a Escola de Edessa no século V traduzem Aristóteles em siríaco. À época áurea de Bagdá, por volta do século IX, o mundo árabe já conta com muitos títulos importantes oriundos da Grécia, via Síria, incluindo as obras de Aristóteles excetuando apenas O Político.
Mas uma “Teologia de Aristóteles” circula com textos que na verdade correspondem a extratos das Enéadas de Plotino. Há também o ”Livro de Causas” com extratos do “Elementos de Teologia”, de Proclo, que se atribui igualmente a Aristóteles. É assim um aristotelismo neoplatonizado – incrível mistura da orientação positiva do racionalismo do Estagirista com a mitologia das forças espirituais do universo do plotinismo – que se desenvolve como filosofia oriental.
O que se torna importante a reter é o paralelo que se estabelece com o pensamento ocidental. Pois a mesma espécie de teologia filosófica começa a desenvolver-se entre os chartrenses. Graças às viagens de Constantino “o Africano” e Adelardo de Bath ao Oriente, e suas traduções, novos influxos de filosofia grega oriundos do mundo árabe penetram no Ocidente - que até aí contava apenas, dentre as obras aristotélicas, com o Organon e o De interpretatione devidos a Boécio.
São duas as vias de importância dessa continuidade que desejo destacar. Há assim o conhecimento da física corpuscular de Demócrito. A Escola de Akhari começa a sustentar o atomismo no Oriente já entre os séculos IX e X. O chartrense Constantino o introduz no Ocidente entre os séculos XI e XII. Há também a grande influência que a filosofia de Aristóteles exerce estabelecendo um campo de controvérsia comum entre os filósofos orientais e ocidentais, o que se pode constatar, por exemplo, examinando as filosofias de São Tomás e Avicena.
Ora, na medida em que o aristotelismo relaciona-se, conforme a observação de Sciacca, tanto ao nominalismo quanto ao empirismo da idade moderna, isto ocorre devido à ênfase no aspecto científico dos estudos aristotélicos que deverá predominar em Oxford. Na verdade, Sciacca revela-se tendencioso, quanto a isso, pois o empirismo da idade moderna é um movimento de índole bem irredutível àquele empirismo mesclado ao nominalismo medieval, entre ambos havendo a inserção do anti-aristotelismo de Galileu e do método experimental, por um lado, o cartesiano por outro lado. Em todo caso,  a recepção dos escritos de Aristóteles se amplia na Europa de modo que a Escolástica, já à época de São Tomás, pode se ocupar dos títulos que permaneciam por traduzir do árabe .
Essas duas vias  me parecem tanto mais destacáveis porque assinalam o segundo momento de asimilação cristã do pensamento grego. Convergem, apesar do seu contraste - atomismo democríteo e continuun extenso aristotélico - na mesma intenção de compreender as teorias que aí se encontram sem comprometer a aceitação das verdades básicas do cristianismo, para isso devendo, é verdade, emprestar-lhes um sentido novo.
O sentido preciso dessa assimilação, contudo, permite visualizar a relação dialética de exterioridade e interioridade que define a patrística e a Escolástica. Pos a via do homem interior da patrística só se instaura como filosófica na medida em que sua motivação é polêmica, determinando-se no horizonte de exterioridade das heresias e do pensamento pagão. A via naturalista da Escolástica desenvolve-se na ambiência que é, já de dentro, cristãmente informada, havendo um meio de estudos há muito estabilizado na familiaridade do manejo cristão com a argumentação dialética e o exercício das artes liberais.
As vias de destaque da Escolástica, a chartrense e a que se concentrará no aristotelismo, convergem também no fortalecimento de uma corrente algo subterrânea que não deixa de despontar no período feudal mas que aí, como observa Bréhier, sempre se manteve reprimida: a do naturalismo, da pesquisa das leis imanentes do universo.
Assim o Renascimento, já oficialmente considerado como tal a partir do século XIV, será o momento em que a leitura desses textos traduzidos deverá se liberar da necessidade de convergir com o dogma cristão, procurando-se agora compreender o que eles efetivamente quiseram expressar. Assiste-se assim a transição do teocentrismo feudal ao humanismo da Renascença.
O que ocorre na Escolástica é então algo paradoxal. A absorção do pensamento helênico em maior amplitude corresponde ao apogeu da assimilação cristã enquanto elaboração de sua filosofia teológica. Mas ao mesmo tempo corresponde também à progressiva inviabilização desse projeto de assimilação. Algo que se figura nos gêneros hinográfico e hagiográfico que se esgotam no século XII, justamente no momento em que, como sublinha Carpeaux, com Hoveden, Grève e Varagine, se obtém suas maiores realizações.
O que me parece importante é observar o papel que o humanismo nascente, já no século XII com a Escola de Chartres, vai exercer na transição desses momentos da ocidentalização, do cristão medieval ao racionalista moderno. Aqui também se poderá observar algo da transição às “ciências” humanas.
Vimos como se pôde, desde a Antigüidade, visualizar o que designei “pensamento humano”: desde a retórica sofística à psicologia de Santo Agostinho, trata-se de opor à explicação física – que corresponde ao projeto de uma lógica racionalista da linguagem – a compreensão do mundo orientada pela existência do ser humano em que consiste, primariamente, qualquer apreensão fenomênica.
Mas até aqui a possibilidade desse compreender esteve inserida na prática social, como no caso dos sofistas, ou no interior de uma concepção metafísica no sentido da onto-teologia, como a cristã, que comprometia o viés humano do pensamento pelo estabelecimento de todo questionar no âmbito do teocentrismo.
Talvez se pudesse principiar a tarefa de caracterizar esse humanismo novo que jáse prefigura  no naturalismo ocidental chartrense do século XII  pela observação de Abdel – Malek, conforme a qual, o que se vê aí é a substituição da razão como “ancilla theologiae” pelo “realismo filosófico”. O realismo positivo, o método – eis, no abandono da alegoria medieval como também da especulação pura da “razão silogística”, a gênese do momento novo da ocidentalização como projeto de racionalização total.
 Assim, deve-se agora procurar compreender esse momento de transição a partir da Escola de Chartres de modo a tematizar como esse viés realista acarretou algo do projeto de racionalidade total ou mundo da técnica, o Ocidente que é o da atualidade, se aquilo que filosoficamente o embasa está, na origem, em comum com o Oriente.



               2 )

                                               
                                                                          Santo Agostinho: cristianismo e ocidentalização
  
                                                                                                            
              Conceituar o Logos como pessoa, isto é o que Heidegger na Introdução à Metafísica vai mostrar como essencialmente não-grego. Encontra-se aí também, de modo muito sucinto, a relação dessa concepção cristã com a filosofia da religião elaborada por Fílon como adaptação da universalidade do conceito grego às escrituras da ortodoxia judaica.
                Logos , enquanto palavra, é "mediador" – mesites – entre criador e criaturas. Na economia da criação que Fílon enuncia a palavra é mesites porque encerra o mandamento, transmite as ordens que a criatura tem que observar para de algum modo fazer preservar sua relação com o criador.
               Na economia cristã da salvação o Logos é mesites porque ele é relacionado a Cristo, o mensageiro ou enviado que transmite as novas ordens, a boa-nova da salvação.
               Mas observando o processo de constituição feudal, e conforme o próprio Heidegger, a onto-teologia está se configurando como a via de ocidentalização propriamente “metafísica”. E se o plotinismo já foi considerado como movimento não de todo enraizado na grecidade, mas dependendo de elementos oriundos do Oriente, a questão se torna bastante complexa. Na verdade é um problema em que várias questões convergem.
               Inicialmente a questão da pertença grega do plotinismo, a seguir a relação do cristianismo com a filosofia greco-latina, e como tudo isso converge no pensamento de Santo Agostinho. A seguir a questão mesma do Ocidente.
              Quanto ao plotinismo (neoplatonismo), creio que se pode propor uma compreensão de sua realidade sincrética a partir da própria pluralidade que se verificou na geofilosofia da Grécia. O elemento de contemplação, que Alliez sugere como o orientalismo de Plotino, talvez pudesse ser mais aproximado ao “pensar poetante” da ontologia fundamental, na expressão de Heidegger, do que propriamente à onto-teologia platônica. Aqui então seria bem o caso de inserir a irredutibilidade da estética do plotinismo em relação à mera pertença sensível que Platão reserva à arte.
         Quanto à relação de cristianismo e filosofia, nenhuma aproximação desse tipo poderia vir a se operar pois é na transposição de planos em relação ao Logos que se pode começar a propor a vacuidade das discussões sobre a existência de um pensamento cristão. Esse pensamento efetivamente se joga e se define como tal no momento mesmo de anunciar-se como algo mais do que “pensamento” no sentido “grego-filosófico” do termo.
         Resta então perguntar sobre o que há com a relação de pensamento cristão e o que se diferenciou daquela ontologia fundamental, isto é, com Platão e a metafísica ou o pensamento da filosofia helênica assim como o cristianismo a defrontou desde o início. Pois se o cristianismo deriva de algo que é não-grego essencialmente, como é que nele se encontra o sentido histórico da ocidentalização como via eleita na encruzilhada de possibilidades que se constituem desde o helenismo?
            Ocorre que aquilo que vem a ser Ocidente não somente se distingue conforme seus momentos propriamente constitutivos como levanta ainda a indagação acerca desses momentos, como se houvesse algum obstáculo em apreende-los simplesmente como estágios de algo já sempre e intrinsecamente o mesmo.
             Assim desde a desterritorialização da soberania descentralizada dos aqueus em relação à máquina despótica oriental, abrangendo a operação de racionalidade conceitual que marca o surgimento do jurídico na Polis, o terceiro momento como o da feudalização vai definir como ocidental não mais grego ou racional e sim cristão. Há, contudo, desde a Polis à “cristandade do ocidente” que se singulariza em relação ao oriente árabe, a partição da própria igreja conforme sua pertença geográfica local “ocidental” à Roma ou às regiões exteriores “orientais” de Grécia, Antioquia, Bizâncio.
           Sem insistir demasiado nas questões particulares que animaram a controvérsia de ortodoxia e heresias da cristianismo ocidental e oriental, não coindindo de todo, importa observar como a ocidentalização caminhou no seu sentido mais essencial: operação política na Grécia primitiva, operação conceitual na Polis Helênica, e agora no cristianismo uma operação complexa que dobra o político e o conceitual ou, mais propriamente, teológico.
Pois como assinala Bréhier, as grandes controvérsias da ortodoxia com as heresias na patrística, isto é, desde o início do cristianismo até a consolidação doutrinária no século V, estendendo sua validade aproximadamente até o século X, importam mais à política eclesiástica do que ao dogma no sentido de sua estrutura metafísica. Não se trata, para o papado, de uma filosofia da natureza de Deus ou teologia por si mesmo, mas apenas de assegurar através das fórmulas mais convenientes o poder espiritual da igreja. É um problema político e jurídico, não propriamente filosófico, que no entanto importa ao conceito.
Contudo aquilo que constitui esse novo mundo ocidental cristão mantém uma relação inquebrantável com o processo geral de ocidentalização, isto é, precisa de alguma forma integrar aqueles momentos anteriores. Muito do problema da relação entre pensamento grego e cristianismo nascente poderia se reduzir pela figuração da realidade histórica do início da nossa era, em que nos cultos de seitas proeminentes como a dos gnósticos adoravam-se imagens de deuses da religião grega, de filósofos e esfígies de Jesus Cristo. E do mesmo modo aqueles que professavam o cristianismo estrito eram freqüentemente oriundos de escolas filosóficas, havendo inserção de pagãos e cristãos no mesmo ambiente cultural, com uma linguagem comum.
Pode-se então afirmar a dobra do político pelo teológico- filosófico como constitutiva do cristianismo enquanto regime de dominação eclesiástica. Mas a deriva propriamente conceitual aí só se observa através daquela transposição de plano do Logos de modo que é uma atitude inteiramente outra que se institui como exercício de pensamento no interior do cristianismo.
Pode-se avaliar esse salto comparando Atos, XVII com Coríntios, I,17. Aceita-se geralmente essa comparação como uma mudança de atitude do apóstolo Paulo em relação ao pensamento grego que estaria prefigurando aqueles dois modos que examinamos anteriormente, a recusa e a aceitação estratégica do discurso filosófico. Não tendo sido bem recebido, o apóstolo se torna hostil.
Mas penso que na realidade a identidade da atitude espiritual paulina é solidária da atitude mais básica do cristianismo em relação ao seu fora. Isso pode ser entrevisto pelo comentário, em Atos, sobre o sentido da atividade que estava tendo lugar no Areópago: tratava-se de “passatampo”, isto é, de simples e puerilmente trocar novidades.
Assim mesmo ali onde aparentemente há uma atitude mais esclarecida a concepção básica não mantem nenhuma comunidade com aquela que anima a filosofia grega. Nesse sentido a única matéria de reflexão e verdade deriva da aceitação da pessoa do Cristo, de obedecer à ordem do “Verbo”. Essa opção básica define o ser humano e assim todo aquele que com ela não se defrontou não pode ser considerado mais do que estando no exterior do estatuto de seres adultos e responsáveis.
Como lidar, porém, com a excelência da produção desses excluídos? Ora enunciando que se trata de um furto – de Homero a Platão, conforme a apologética antiga, tudo é cópia das escrituras dos judeus - ora utilizando contra eles os seus próprios produtos conforme a fórmula de Damasceno.
Na evolução do feudalismo, com a reforma de Alcuino no final do século VIII, essa posição de Damasceno evolui no sentido de uma repartição de tarefas. A verdade, ou aquilo que é essencial, pertence ao recebimento e aceitação da Mensagem. O que é mundano conserva o sentido de sua utilidade prática e só assim deve ser acolhido. Instituem-se as sete artes liberais, o Trivio (gramática, retórica e lógica) e o Quadrívio ( aritmética, geometria, astronomia e música), sem prejuízo para as verdades da fé.
Mas se ao poder eclesiástico a dobra do conceito só interessa politicamente, ela não deixa de marcar o próprio percurso espiritual daqueles que se envolvem com a controvérsia anti-herética, como é o caso de Santo Agostinho. Assiste-se assim nessa fase de consolidação doutrinária que é a patrística uma verdadeira ruptura com o cristianismo primitivo, conforme observou Alliez.
Santo Agostinho é o artífice dessa ruptura na medida em que, desde uma doutrina da missão salvífica que investe o iniciado na obrigação de transformar a lei do mundo e da carne pela lei de Deus, todo o sentido do cristianismo agora se transpõe ao “ homem interior”. Trata-se de evitar as possíveis interpretações das Escrituras capazes de investir a Mensagem de uma autêntica força de transformação da exterioridade social.
             Mas como pensar esse “homem interior”? Insere-se aí, por exemplo, o alcance do antepelagianismo agostiniano. Pois Pelágio afirma, numa recuperação cristã da confiança estóica na virtude, o poder da natureza humana em evitar o mal e fazer o bem, se assim desejar.
            Aparentemente o zelo de Santo Agostinho em relação a essa controvérsia pode se explicar suficientemente pela conseqüência que ela acarreta. Se Pelágio aporta a essa afirmação para lutar contra os que querem se eximir de executar a lei de Deus sob a desculpa da fraqueza da carne, o que se segue é a negação do pecado original. Deus não poderia imputar a inocentes o pecado de um só homem, Adão.
            Mas essa conseqüência seria tão indesejável se ela não fizesse a força do humano independente dos meios da “graça”, a saber, os sacramentos da Igreja? Santo Agostinho enuncia assim, contra tal “heresia”, a sua doutrina da predestinação. O bem só pode vir à alma decaída por uma graça especial que pertence apenas àqueles predestinados eternamente por Deus para recebe-la. Até um recém-nascido, sem batismo, é um pecador, assim como todos os pagãos ignorantes da graça do Cristo.
           Conhece-se através de Palcal os problemas que uma tal doutrina suscitará posteriormente. Aqui importa observar que essa concepção se desenvolve com muita coerência na teorização do homem interior que designa como a própria consciência da individuação a consciência da diferença da criatura em relação ao criador.
            Converge aqui aquela reintegração do conceito, a plicatura do grego sobre o não-grego, problemática característica a enfrentar na compreensão da consistência medieval. Pois como não ver nessa ruptura com o cristianismo primitivo que assinala o cristianismo imperial, em vias de se feudalizar como instituição política dominante, o influxo do neoplatonismo já ele mesmo sobredeterminado em relação à filosofia helênica?
           O novo cristianismo agostiniano emerge na auto-certeza do sujeito deslocando a cristã determinação anterior da certeza da salvação. Fé como exercício da vontade, a certeza do sujeito sobre si mesmo como possibilidade da certeza sobre Deus, eis a preminência da teologia negativa já que essa realidade que é Deus não se deixa determinar por nada que se restrinja meramente ao ser criado. O plotinismo permite como vimos, efetivamente a mesma auto-certeza que deriva, algo dialeticamente, do hipostasiar da alma em relação ao Todo.
          E já a relação de contemplação entre Alma e Ser faz intervir na própria realidade anímica a identidade do conhecimento de si que pertence ao Inteligível. Como afirma Heidegger, o neoplatonismo se constitui como estrutura profunda do cristianismo.
          Mas o pensamento cristão vai tender a dialetizar aquilo que em Plotino se desenvolve como movimento de ir e vir constitutivo da economia do Universo. Pois entre os neoplatônicos os momentos sucessivos que compreendem a via de multiplicação do Uno e a via de reunificação do múltiplo são derivados de uma necessidade natural e eterna. Assim o exemplo de Jean Scot Erigena, no século IX, que desenvolve um esquema “neoplatônico” de divisões da Natureza: Deus princípio; Verbo, Mundo; Deus fim.  
           O Deus princípio é de onde tudo procede, o Deus fim para onde tudo tende como termo do movimento das coisas que buscam a perfeição. Ao longo dos misticismos entre feudalismo e renascimento, vão ser afirmadas assimilações das hipóteses neoplatônicas (uno, ser, alma)  à trindade cristã, e o Verbo (segunda hipóstase, inteligência, ideias ou ser) será designado o Filho, assimilado a Jesus.
           Como observa Bréhier, porém, esse não seria um verdadeiro sistema de emanação e sim, propriamente, uma Teofania. Deus pai, Verbo filho, sendo que em Deus ser e querer, natureza e vontade, são o mesmo. Há desenvolvimento histórico e iniciativas aí onde o neoplatonismo só via uma ordem eterna e imutável.
           Quanto a Santo Agostinho, ainda no processo inicial de redução cristã de todo elemento pagão, se encarregará de dialetizar a relação alma-todo de modo que o mais característico do cristianismo, derivando de sua concepção pessoal de Logos, será a cisão de criador e criatura. Cisão irredutível entre homem e Deus, dependência total do homem em relação a Deus.
          Como afirmou Alliez, considerando o alcance da cesura entre os sentidos neoplatônico e cristão do termo “conversão”, não se trata com Santo Agostinho da ilusão do conhecimento do semelhante pelo semelhante, mas sim de “apreensão” entre princípios opostos que vão encontrar a síntese, como reconciliação, em Cristo.
          A oposição se relança tematicamente em vários níveis. Há duas leis, a de Deus segundo o homem interior, isto é, a do espírito, e a da carne. Duas cidades, a secularmente orientada pela cupidez e a espiritualmente orientada pela caridade.Há também dois tempos, o Aevum, que é vida eterna, o “tempo cósmico da criação”;  e o tempo do homem, “o tempo histórico da alteração”, conforme as expressões de Alliez.
Ora, o plotinismo também observa uma duplicação temporal. Pois o que a alma que contempla o Inteligível vê são formas de luz enquanto que na existência corpórea o que resta a ver são os traços sem qualidades das figuras geométricas, a pura ilusão da materialidade. A via da salvação consiste na renúncia da alma a esse olhar que obscurece a visão para liberar aquele ver que lhe restitui a visão da luz no êxtase – experiência do Todo. Mas nesse acontecimento de Contemplação o que se libera é também o tempo que Alliez conceituará como a autotemporalização do absoluto, o originário do tempo em que os modos do passado e do futuro são contemporâneos do presente na síntese passiva da unificação do ser.
Experiência da arte bizantina, o tempo absoluto do plotinismo estaria assim, conforme Alliez, na prefiguração do Ereignis heideggeriano e do Logos do mundo estético, o Urzeit husserliano. Trata-se do paradoxo do sentido íntimo. Pois o Ereignis, que na terminologia de Heidegger traduz o acontecimento apropriador do sentido, enquanto Contemplação só restitui o Eu puro no momento mesmo em que ele deixa de ser o “eu” individual que se autoapreende a si, isto é, quando torna-se “outro”, mas em relação àquela outridade/exterioridade do eu empírico,  enquanto Eu puro seu centro devendo agora ser coincidente com o centro do universo ou identidade absoluta.
Já na conceituação do tempo em Santo Agostinho a duplicação inicial deve redundar em três apresentações. Inicia-se com a menção ao Aevum, o tempo em que Deus cria o mundo, o tempo cósmico dos movimentos celestes, eternidade participada às criaturas naquilo em que elas são mais essencialmente. A seguir deve-se conceituar o tempo existencial que não se mede pelo movimento do corpo e sim pela atividade da alma. Simetricamente oposto ao Aevum esse é o tempo como distensão da alma, o tempo derivado da queda. Trata-se do tempo psicológico, ligado à avareza e à atividade do mercadejar porque só se instaura a partir do momento em que o ser humano se exterioriza no mundo da materialidade,
Mas como reconduzir essa alma que se distende, à qual o tempo é a atividade mais própria, a forma mesma da atividade que só “mede” a duração como movimento intensivo de espera, atenção, expectação, sendo a distensão sempre o tender ao futuro, como reconduzir esse tempo derivado da alma ao pensamento do homem interior, espiritual, portanto mantendo a relação essencial com o criador através do exercício da fé?
A via da contemplação do plotinismo não poderia se manter uma vez que a conciliação só se faz, como conversão, por uma providência posterior, o Cristo, ao invés de se propor como constitutividade do humano mesmo. No entanto, se a relação é de autoria, deve haver algo de participado na criatura que vem do criador. Santo Agostinho vai utilizar aí a oposição entre os termos distensio e intentio. O tempo derivado, que é o que conhecemos do mundo “secular” é distensio animi, o tender da alma ao futuro que pertence ao comum dos homens na exterioridade das relações. Mas à alma, através do exercício da fé, conserva-se a via da Intenção, a Intentio animi, pois ela assegura a transformação dos modos temporais, ampliando o presente, sendo agora o tender da alma ao eterno.
Assim, desde o Aevum e a caracterização do tempo secular da distensio, segue-se a teorização do tempo teológico da intentio como via de conversão de modo que se a ciência procede pela exterioridade na distenção, a sabedoria é “contemplação do eterno”, a via do homem interior. Observa-se que a conservação da noção de contemplação se desloca em relação ao uso que dela se faz em Plotino. Pois esse tempo não poderia ser concebido por si mesmo, sem a pressuposição do presente eterno de Deus que no entanto permanece por natureza irredutível à alma.
Como as duas cidades na existência terrestre, os dois tempos não chegam nunca a se destacar completamente, permanecendo de algum modo misturados. Conceitualmente é preciso pensar a síntese dialética mas como operação cristã ela deve supor a realidade "mesites” do Logos e aquilo que a ela se relaciona, a realidade da Cisão.
A questão aí não é de modo algum simples. A liberação da Intenção depende da cisão fundamental de criador e criatura que se refaz no âmbito do humano enquanto este é vontade e consciência que decide entre o homem secular e o homem espiritual, exterior e interior. Mas todas as duplicações convergem para esse paradoxo da semelhança-reconciliação dos opostos. Assim é uma apreensão metafísica, não psicológica, que permite captar a figuração interior de Deus no mais profundo da consciência de si, na “Memória Dei”. Objeto intencional moralmente sancionado porque cem por cento interior.
O que se pode possibilitar assim, no plano mesmo da criatura ainda que transpondo-se pelo exercício da fé, é aquilo a que se relaciona a introdução do Logos-mesites. Pois se o Logos é dado na relação Deus-criatura, a mutação afeta a apreensão do Ser. Há identidade entre consciência e objeto, preexistência espiritual do ser nas coisas, corte com o pensamento antigo do ser que se conservava como entidade objetiva.
A relação da trindade com as hipóteses já o demonstra, pois se em Plotino a conservação de Ser e Essência se mantém derivada do Uno, o cristianismo oficial vai taxar de heréticas as objeções de Sabélio e dos Modalistas da Igreja oriental que insistem na negação da assimilação do Verbo hipostasiado a Cristo. O dogma prescreve essa assimilação no momento da afirmação da Trindade. Deus é Ser e Ser é Verdade. A independência do plotinismo, do Uno em relação ao Ser, não se mantém na perspectiva desse dogma. A Intenção, como a Revelação, não são acontecimentos de auto-apropriação, mas sim fatos do conceder da existência já pressuposta como derivação do criado em relação ao criador.
Assimilação da realidade do mundo com o ser criado, logo a existência resultando como o mais inautêntico, domínio do afinal meramente prático e utilizável. A cisão permanece, pois a verdade da alma é a sua limitação em relação a Deus. O que é eterno é a hierarquia dos espíritos. Se o tempo teológico tende para o Aevum como eternidade, neste não se encontra mais do que a mesma limitação derivada da cisão. O máximo de transcendência acarreta assim o máximo de limitação do particular, inversamente ao plotinismo onde a transcendência é o horizonte de abertura na qual todo o particular se abole para liberar a continuidade do Princípio que, mais propriamente, o constitui.
Nesse sentido pode-se reconsiderar o aporte humanista do cristianismo, o modo pelo qual ele se instala inicialmente no horizonte conceitual do pensamento retórico-hermenêutico grego, pois sua mediação era a palavra comunitária. Mas se podemos ainda pretender que a Intenção de Santo Agostinho retoma algo da imagem-contemplação de Plotino, liberando-se da imagem-ação, quanto a isso devemos recordar a afirmação de Paul Ricouer, citada por Alliez, pela qual há impossibilidade da pertença fenomenológica do tempo agostinisno, ao mesmo tempo em que aí se pode localizar a fenomenologia única e autêntica.
A transposição do plano parece-me porém não estender tal afirmação no sentido do paradoxo. Pois a relação da Revelação depende do Conceder da graça, e a criatura jamais aspira à sua própria natureza no Todo.
Recoloca-se aqui de certo modo a questão complicada da Ocidentalização. Pois se não se pode pensar seus momentos como de todo sem relação uns com os outros, resta que na medida em que se afasta tão decisivamente de toda possibilidade de uma ontologia fundamental, a dogmática cristã se relaciona de certo modo, como na proposição de Heidegger, com o crescimento do deserto que caracteriza o aporte relacionante de pensar e razão tão propriamente metafísico e ocidental.
O afastamento aí é precisamente feito em relação àquele “pensar poetante”, ou ao elemento puro da contemplação, ao pensamento não subsumido à proposição e ao juízo lógico. Mas parece problemático convergir no mesmo horizonte essa dogmática cristã , para a qual a razão é sempre algo derivado, reservado ao domínio do instrumento, e a possível definição moderno-contemporânea do Ocidente como projeto de racionalidade total.
Mas se for feita abstração do juízo de valor, o que o cristianismo possibilitou em relação a esse novo momento da ocidentalização é a sua essência mesma, na medida em que o termo “razão” só se determinou por completo nesse aporte de utilidade, nesse estar voltado ao ente, a partir do pensamento cristão. Até então a tensão permanecia entre tendência metafísica e abertura hermenêutica de modo que no interior do mundo grego e da filosofia “pagã” mesmo após as “decisões operadas no platonismo”, conforme a expressão de Boutot, conservava-se o sentido originário da Physis, o que a via sincrética do helenismo poderia, inclusive, vir a favorecer.
Não obstante, o pensamento cristão e o que dele se conservou, por exemplo em Kirkegaard, conforme observou Pépin, sempre sustentou o primado do absurdo como objeto da fé. Mas vimos qual a imagem da razão que daí deriva, por um lado somente o que se relaciona aos entes, ciência em vez de teologia, mas por outro lado e mais essencialmente, identidade absoluta pelo viés da criação. Pode-se propor , contudo, que o problema restou intacto. Pois essa imagem não prolonga aquelas decisões mesmas, de modo que, como sugerem vários  autores, o platonismo prepara o cristianismo? Parece-me contudo que o neoplatonismo antepõe a necessidade de se afirmar que não necessariamente. Pois o projeto platônico poderia ter prosseguido numa interlocução que viesse recuperar o sentido mais originário de suas palavras-guia autenticamente gregas.
Quanto a isso é interessante a observação de Bréhier pela qual os próprios “destinos da filosofia” da época feudal poderiam ter sido outros se Boécio houvesse levado a cabo seu “imenso trabalho” de traduzir em latim as obras de Platão e Aristóteles.
O mundo fechado dos claustros derivou, como reporta Bréhier, do sem-número de comunidades filosóficas religiosas do paganismo, características do final do helenismo, que parecem reconstituir o cenário do “Contra os Acadêmicos” agostiniano. Mas a reintrodução das obras de Aristóteles e a doutrina de São Tomás já é a ambiência tardo-feudal. Sem aprofundar por ora a análise do período, basta observar algo da filosofia de Duns Scot quanto à teoria do tempo.
Conforme Alliez, aceitando a independência do tempo relativamente ao movimento físico, como aporte propriamente agostiniano, Duns Scot deverá opor o que ele designa como tempo abstrato, potencial enquanto existente na ausência de qualquer movimento, ao tempo atual que o representa, contudo, mensurando todo movimento real.
Resta que o tempo abstrato, se independente do movimento celeste, não é mais, por isso, psicológico, e sim absoluto, independente da experiência, aprioristicamente postulado. O tempo comum permanece, portanto, relativo à experiência, à percepção dos movimentos visíveis dos corpos celestes.
Conhece-se a história: a partir desse ponto tender-se-á a limitar o conceito de tempo ao sentido exclusivo do tempo atual convergindo assim, concomitantemente à unificação da lei natural universal, até aí observando a repartição dos mundos celeste e sublunar, na eclosão da física moderna onde nada desse dualismo de mundos permanece necessário ao pensar.
 O longo período que se estende entre o tempo anímico agostiniano e a redução ao tempo atual da física moderna demarca a vigência do "pensamento medieval", abrangendo ainda o interregno renascentista em que seus motivos se prolongam ou cujo decurso, em todo caso, ele provoca pelas questões que suscita em seu desenvolvimento.
       
   
     
  3 )
            
                                                                                              A Época de Pierre Abelardo


              O século XII inicia movimentações que desabrocharão plenamente no século seguinte. No entanto conserva uma ambientação de liberdade e iniciativa bastante característica, o que se compreenderá melhor ao analisar a época de São Tomás.
              No plano político já surgem, ainda que muito no início, os sinais da recuperação do poder monárquico centralizado, a partir da França. Quanto à igreja os focos principais de sua evolução nessa época são o movimento expansionista das cruzadas e o desenvolvimeto das escolas que logo se concentrarão na instituição universitária nascente como projeto eclesiástico de consolidação da hegemonia.
             A tendência monárquico centralizadora porém é de certo modo culturalmente reforçada assim, pois se podem delinear as características do que deverá futuramente consolidar-se como cultura nacional. As universidades de Paris, Oxford, Nápoles e Bolonha são centros intelectuais que localizam na França, Inglaterra, Itália, movimentos importantes de personagens e idéias que caracterizam a transição da Escolástica ao Renascimento. Já no século XIV, com Mestre Eckhart, constuma-se localizar o início da filosofia alemã.
            Se no século XII ainda se pode afirmar o “universalismo” do período feudal, a partir da delimitação comum da cultura eclesiástica e do uso do latim, ou do caráter fechado da sociedade, as oposições internas e o apelo das origens são elementos que se aguçam nesse novo ambiente urbano, cenário agora de irresistível heterogeneidade. O equilíbrio político dos poderes espiritual e temporal estabelecido no Ocidente a partir da era carolíngea – que provavelmente é o que define com mais propriedade a chamada “Idade Média” – começa a se desfazer.
            A produção filosófica chartrense constitui um limiar. Já se beneficia, como vimos, da introdução na Europa de contribuições árabes atinentes ao pensamento antigo. Mas não se deparou ainda com o impacto representado pelos textos de filosofia aristotélica plenamente recuperados. O momento chartrense não se confunde com o momento tomista, como se essa dupla de séculos viesse assinalar a verdadeira mutação no interior do processo longo de ocidentalização, de modo que se torna possível compreender como se transpõe o momento cristão àquele da racionalidade moderna.
         Mas já o gótico transforma a concepção do espaço espiritual, a igreja. Trata-se de substituir a parede pesada pela ambientação luminosa da catedral que se eleva ao mesmo tempo em que se adelgaça. A arte do vitral é a da luz colorida. Conforme Honório de Autum, citado por Alliez, essas janelas são os doutores da “lux nova” que à época de Chartres oferecem o esclarecimento sobre os elementos e os seus verdadeiros lugares no mundo.
          Permitem assim que se pense esse mesmo mundo como ordenação sempiterna e coerente dos lugares atribuídos a cada parte – bispo, rei, burguês – sob cuja tutela a cena sacra representada no vitral pode se desenrolar. Mas na evolução do período a cor vai solicitar cada vez mais elementos para a constituição do campo, aumentando a complexidade e também tornando mais visível a intervenção do artista. A imediatez se rompe, do vidro e do elemento constituinte, da palavra e da coisa. Assim como do momento platônico-chartrense da translucidez máxima até o aristotélico-tomista da complexidade maior em que o sujeito vai emergir do que até aí deveria ser apenas o conhecimento das coisas.
           Isso sem contrapor o esquema de Panofski que, conforme Carpeaux, demonstrou a correspondência da planta e da decoração da catedral com o plano “fornecido pelos construtores da teologia e da metafísica”.
          Ainda no século XI a carta de Otto III a Gerbert de Aurillac, que veio a ser o papa esclarecido Silvestre II, testemunhava a autocrítica de sua rusticidade saxônia. Solicitava ele assim, com uma comovente humildade, que o amigo lhe completasse a educação e reavivasse o espírito helênico herdado de sua mãe, legitimamente grega.
Esse caso, narrado por Henry Focillon, não surge de modo isolado. Repercute, por exemplo, na observação de Carpeaux sobre a popularidade do gênero “romance de Tróia” contemporâneo do “romance cortês”, ambos da “cosmopolis” do século XII. Os príncipes feudais costumavam crer na sua descendência de heróis troianos baseando-se até em árvores genealógicas arbitrárias.
Há agora o anseio generalizado pela cultura antiga. Assim Carpeaux não deixa de notar, a propósito da Escola de Chartres, suas “veleidades de poesia e ciências naturais” enquanto Sciacca observa que é o gosto e o cultivo da cultura clássica, juntamente com a multiplicidade de interesses, que concede à essa Escola “uma carcterística particular”. Com efeito, o famoso “estilo” chartrense é ainda sublinhado por Bréhier por seu caráter “cuidadoso” e por sua “fantasia humanista”.
            Por tais vias me parece possível aproximar a tendência dos estudos no interior da Escola chartrense àquela que anima a produção cultural literária do século XII, no exterior deses meios eclesiásticos. Basta verificar a multiplicidade dos gêneros.
Há assim, inicialmente, ainda nos meios escolares e religiosos oficiais a produção carcteristicamente derivada do cristianismo, o desenvolvimento da filosofia impregnada pela ideologia eclesiástica.
Quanto a isso o século XII é uma época de sistematização dos dados do cristianismo até aí esparsos: cânones, regras morais e opiniões dos padres devem ser agora reunidos em modos expositivos coerentes. Os gêneros que se consagram a esse exercício abrangem os “Espelhos” da fé e dos costumes (Ives de Chartres, Raul Ardent) e os livros de Sentenças como o de Guilherme de Champeaux e sobretudo o de Pedro Lombardo, o Mestre das Sentenças que se tornou o fundamento do ensino de teologia no século seguinte.
Lombardo foi discípulo de Abelardo, autor do Sic et Non, livro de sentenças que inova por apresenta-las agrupando em duas classes as opiniões dos padres, as que afirmam e as que negam, de modo que o autor pode então definir as regras para conciliar as opiniões. As glosas e as paráfrases são os gêneros dessa época que, conforme Alain de Libera, introduzem textos de autores que se devem estudar e que estabelecem um programa de leitura imposto ao texto em questão. Em meados do século surge a Summa, o gênero feudal por excelência, na forma de tratado sistematicamente organizado
O par catedral & suma pareceu por muito tempo tão emblemático da idade média quanto a versão renascentista desse tempo como de obscuridade e superstição puras. Mas pode-se constatar, procedendo agora o bosquejo da literatura praticada nos castelos e nas aldeias, conforme Carpeaux, que há bastante complexidade nesse período, assim como se poderá observar também a partir do exame do pensamento filosófico.
Ainda na produção intrinsecamente relacionada ao cristianismo, concomitantemente à progressiva decadência do hino e da hagiografia, apontada por Carpeaux, há o florescimento do gênero "Visio”. São relatos de visões e êxtases místicos em que se destacam Strabo, Monte Cassino e inúmeras poetisas, como Hildegarda de Bingen e Santa Gertrudes, que introduzem um “vocabulário erótico” nas “descrições dos êxtases”.
Mas com essa vertente religiosa coexistem mais dois vetores importantes na produção literária da época. São vetores oriundos do paganismo. A greco-latinidade constitui, como vimos pelo exemplo da nobreza em geral e particularmente de Otto III, um horizonte perene de referência espiritual sendo progresivamente acrescentado pela recuperação das fontes através das traduções.
E há ainda o influxo popular que parece explicar o lirismo medieval fazendo ressoar na forma de baladas, canções de amor e de romarias, os elementos bárbaros que constituíram o povoamento local. Esse elemento popular é bastante demonstrável na produção poética da península Ibérica mas também ocorre entre povos germanos e célticos, estes acrescentando-se-se aos anglo saxões na Inglaterra.
Com efeito, esse elemento popular tem sido fecundamente relacionado ao problema ainda sem solução sobre as origens da poesia aristocrática provençal que se desenvolve, desde esse núcleo na “Proensa”, até a produção galego-portuguesa e os “Minessang” germânicos. Há ainda, entre outras teorias menos convincentes, a que associa a origem do trovadorismo ao desenvolvimento da heresia cátara no Sul da França.
Romances de espírito greco-latino, como de Tróia ou do tipo viagens de Alexandre, sátiras zoológicas como o Physiólogos, em que os animais representam tipos e caracteres humanos, romances da corte de Carlos Magno, são comuns já no século XII. A provençalização dos temas se expande e há ainda o gênero “romance cortês” de Chrétien de Troyes, em que utilizam-se as lendas de Arthur e os cavalheiros da távola redonda, predominando os temas do Graal e do romance entre Lancelot e Guinevére. A poesia provençal coexiste com a dos goliardos, andarilhos que cantam o amor e o vinho. Ambas são acentuadamente heréticas e anticlericais.
         Ora, essas vertentes culturais se relacionam aos elementos que vimos dever se adequar aos seus lugares precisos na composição gótica, especialmente na arte do vitral. A igraja, a nobreza e a burguesia – cristianismo, greco-latinidade e origens bárbaras, são também os elementos agora em oposição no interior dessa sociedade que se reurbaniza.
         Não apenas existe a oposição tripartite de superfície mas também o conflito opera em profundidade. O clero não tende para os mesmos interesses e posições conforme se trate do alto funcionalismo ou dos frades menores. A nobreza tende a se repartir conforme o interesse centralizador monárquico vai se consubstanciando como a opção mais viável à consolidação do poder temporal confrontando o religioso. Nas cidades há óbvia oposição entre a alta e a pequena burguesia. E de modo geral todos esses elementos se opõem ao camponês pobre – a nobreza querendo apenas garantir a dominação sobre os servos enquanto a burguesia acrescenta a mofa sobre os rústicos habitantes do campo que alimentam assim sua oposição à gente das cidades.
          Se, como vimos, a arte se torna cada vez menos simples no seu sistema de composição, as relações sociais se tornam também bastante complexas a ponto de transbordar o sistema que vinha se caracterizando como “feudalismo”. Quanto a isso é bastante consensual assinalar-se o ponto de ruptura na oposição entre o papado e o império manifestando-se já no século XI quando tem início a querela das investiduras.                  
         Efetivamente desde então o conflito entre poder religioso e temporal se acentua, não se limitando ao Sacro Império mas também à França de Filipe IV em que eclode o cisma do Ocidente.
          Assim desenrola-se a pugna envolvendo desde a nomeação de cargos eclesiásticos no Sacro Império até a própria eleição do pontífice, o que determinou o deslocamento da sede do papado para Avignon e a conseqüente eleição de outro papa em Roma – com ainda a eleição do papa de Pisa – e as lutas que se seguiram entre os três papas. A tensão entre as duas “civitates”, que rivalizam pelo título augustiniano de Civitas Dei, na interpretação de von Freising, vai se transformar na questão teórica da Potestas que finalmente modelará a doutrina moderna do Estado nacional.
           Esse ponto de ruptura problematiza aquela periodização mais comum da Idade Média como interregno trevoso entre a cultura antiga e o Renascimento. Esse esquema tripartido das Idades emergiu da condenção a que o Renascimento votou o passado medieval e parece severamente comprometido pela consideração desse estado de coisas conflituoso, mas ainda pelo situamento cada vez mais recuado dos movimentos de renascença cultural.
          Já observamos que o século XII pode ser pensado na abrangência de uma verdadeira renascença, conforme também já propôs Haskins. Assim, como sublinha Bréhier, o platonismo praticado na Escola de Chartres não procura subordinar-se ao dogma ou servir à apologética cristã, mas se desenvolve como filosofia independente.

         
             4 )

                                                                A Filosofia Chartrense


             A Escola de Chartres foi fundada ainda no século XI pelo bispo Fulberto. Mas são as viagens e traduções de Constantino e Adelardo que principiam a sua fase áurea. Essa fase inclui também Bernardo de Chartres, Guilherme de Conches, Gilberto Porretano, Thierry de Chartres e João de Salisbury.
             Adelardo de Bath introduz os Elementos de Euclides, obras astronômicas, a aritmética de Alchwarismi. Amplia-se o quadrivium. Mas Adelardo introduz também a tendência a conciliar Aristóteles e Platão quanto à teoria do conhecimento. Conforme essa solução, bastante comum no período, Aristóteles e o conhecimento que depende da imaginação, isto é, da capacidade de formar imagens individualizadas a partir dos dados dos sentidos, são corretamente aplicáveis ao mundo material. Mas o conhecimento perfeito é o das formas platônicas arquetípicas, assim como existem na mente de Deus.
           Essas formas existem independentemente das coisas sensíveis. Quanto aos universais aristotélicos, designam a realidade das coisas sensíveis conforme consideradas pelo intelecto. Assim o problema dos universais se resolve pela especificação da relação sob a qual a essência está sendo considerada, seja como indivíduo, gênero ou espécie. Os universais derivam da significação das coisas sensíveis e são nomeados pela linguagem. As formas platônicas separadas que existem em Deus são também cognoscíveis mas através da dialética.
           Já com Bernardo de Chartres a tendência a conciliar as teorias platônicas e aristotélicas se acentua. As formas arquetípicas e os universais são por ele concebidos como idênticos.
            Mas é na obra de Guilherme de Conches que se concentra uma verdadeira mudança na concepção de filosofia, relacionada efetivamente com o “novo sentimento da natureza”, conforme Bréhier e também assinalado por Alliez. O trivium se torna propedêutica à filosofia. Mas a filosofia mesma se designa como comportando duas seções: a teologia e o quadrivium. A ciência real comporta o conhecimento de Deus e da Natureza. As formas retóricas não se classificam propriamente como científicas.
            Ocorre por esse meio a delimitação de um campo de saber a que se relaciona a compreensão da natureza que devém da explicação humana, não da revelação. Trata-se do conhecimento das leis naturais. O atomismo postulado por Guilherme de Conches é, conforme Alliez, tributário do modelo fisio-lógico de Galiano, provavelmente mais do que da tradição do Timeu platônico cuja tradução, via Chalcidio, para no momento preciso da exposição platônica da estrutura geométrica dos quatro elementos.
           Assim, Guilherme de Conches postula que esses quatro macroelementos empiricamente acessíveis, terra, água, ar e fogo, são na realidade compostos por “particulae”: os átomos indivisíveis que compõem os elementos divisíveis. Análise e síntese formam o método pelo qual se pode conhecer racionalmente a natureza que é essencialmente um processo de composição e decomposição. Os macroelementos não precisam ser diretamente derivados das Idéias, do mundo inteligível platônico. A matéria informa a matéria através dos seus elementos atômicos constituintes que se conjugam mecanicamente.
           As leis naturais obtidas pelo método racional de análise e síntese constituem a ciência como explicação física da transmutação dos elementos invisíveis mas inferíveis pela penetração do método. A física em Guilherme de Conches é já suposta como ciência autônoma. A operação atribuída a Deus se designa como potência que concede às coisas a sua natureza. Mas são as operação da natureza que formam os seres vivos que nela coexistem.
          O pai cria o mundo, o Filho é a sabedoria pela qual Ele o criou e o Espírito Santo é a vontade pela qual Ele controla o universo. Essa imagem da trindade, expressa alegoricamente, pretende deslocar a mais clássica – potência, sabedoria e bondade – propugnada por Abelardo, Beda, Santo Agostinho e o Lombardo.
       A crítica de Guilherme de Conches se enraíza na atribuição de afecções humanas a Deus. Sua imagem da trindade se concebe como relação de Deus com a criatura, não designando Deus na sua intimidade mesma ou a inter-relação das pessoas da trindade, conforme observa Bréhier. Já a tríade cássica pretende enunciar o conhecimento de Deus assim como Ele é intimamente, ao mesmo tempo em que O considera sob o aspecto das afecções humanas – a bondade pela qual ele cria o mundo. O problema que assim se enuncia , juntamente com a questão platônico-aristotélica do conhecimento, é o das formas e dos universais, bastante característico desse período.
        Trata-se da atribuição das categorias: são elas atribuíveis a Deus assim como às criaturas? Se não, como se pode ter algum conhecimento enunciável sobre Deus? Ou em outros termos, conforme a expressão de Bréhier: até que ponto a realidade divina está sujeita às regras do conhecimento das coisas naturais?
       Pode-se observar como essas questões se desenvolvem com Gilberto Porretano que adota a concepção de Sêneca pela qual a forma platônica é o modelo exterior da obra enquanto a aristotélica é a forma inerente à obra. Ele postula que o ser da substância só existe por essas formas que lhe são inerentes. Mas as formas não subsistem fora das substâncias que fazem subsistir. Deus possui assim uma forma – divindade ou deidade - pela qual as pessoas da trindade são informadas, sem se confundir com ela.
Existe uma regra comum às coisas naturais e a Deus, a ordem pela qual o ser vem sempre da forma. Quanto ao mais, conforme Gilberto Porretano, não convém aplicar às “coisas teológicas” regras que pertencem às “coisas naturais”.
              Essa perspectiva se encontra também em Guilherme de Saint-Thierry: há reconhecimento de que os “nomes” que são aplicados pelos homens à “doutrina da fé” não podem ser totalmente descartados, permitindo-se assim resolver a questão pela adaptação desses nomes às regras doutrinais. Mas essa resolução é como uma concessão ou uma justificação da necessidade do controle eclesiástico sobre o modo de se fazer a adaptação. Com efeito, Guilherme de Saint-Thierry e São Bernardo são os maiores críticos dessa nova filosofia que se expande no meio chartrense e em Paris através de Abelardo.
           Já Thierry de Chartres – “príncipe dos filósofos da Europa” – é nomeado chanceler da Escola na década de quarenta, quando se inicia a construção da fachada ocidental da Catedral de Chartres. Sua explicação da criação é de modo pioneiro, conforme Alliez, puramente física.
           A natureza criada surge como histórica, continuidade articulada. Trata-se de um idealismo naturalista possivelmente assimilável como panteísmo, retorno à concepção cósmica antiga no interior mesmo de uma explicação da criação do mundo começando pelo Hexaêmeron do Gênesis. Ao invés de pensar a intervenção criadora atuando a cada vez, a cada “dia” conforme poderia sugerir a narrativa do Gênesis, basta que Deus tenha criado o fogo, o igneous vigor que põe automaticamente em marcha o engendramento dos outros elementos. Até que o calor chegou ao ponto vital, vitalis calor, pelo qual puderam vir à existência os animais, dentre os quais o homem.
           Os quatro macroelementos são constituídos por partículas, como em Guilherme de Conches, mas suas qualidades são agora explicadas através de uma teoria cinética. O ar e o fogo devem sua leveza ao seu movimento incessante. Cercando a terra e a água, por sua vez, o ar e o fogo as dota com a solidez e o peso respectivos, pela força resultante do seu movimento em torno delas.
            As partículas móveis constituintes estão em constante transformação, pois os elementos se transmutam uns nos outros. Suas relações mecânicas explicam cineticamente suas localizações. Mas a forma essencial das coisas é a unidade e, portanto, é Deus. As coisas existem enquanto participantes do Todo que é Unidade.
           Objetividade ou subjetividade, virtude operante enquanto Alma do Mundo ou Espírito Santo, eis o que não mais faz diferença. Trata-se apenas de escolher, ou poder escolher, usar a linguagem da fé ou do mito platônico – pois Platão no Timeu fala “per integumentum”.
        Essencialmente no meio chartrense a natureza é considerada como princípio de atividade relativamente autônomo. Logo, a rede de correspondências que liga tudo o que participa desse mesmo Todo vai ser concebida como rede causal, repondo-se a consistência do pensamento no âmbito da cientificidade assim como já conceitualmente delineada por Aristóteles: conhecimento pela causa, retorno à evidência.
       É a Providência mesma que se concebe agora como necessidade absoluta. Clarembaud de Arras, aluno de Thierry de Chartres, a enuncia como operador da complicatio-explicatio, par já presente em Thierry, conforme Alliez, que deverá caracterizar o pensamento filosófico no Renascimento com Nicolau Cusano e na modernidade, em Spinoza.
        O que em Deus existe conjuntamente, o que nele está ou é “complicado”, se “explica” na ordem do mundo. Deus é a complicatio de todas as coisas , o universo é a sua explicatio. O que em Deus é igualdade, simplicidade e identidade, no universo é desigualdade e divisibilidade. O que em Deus se encontra contraído, se estende na ordem universal.
         O movimento de complicação e explicação á algo análogo a epistrophé e proodos, conversão e processão, de Plotino. Apenas o que se desenvolve assim não se pensa ao modo de emanação, provindo do Uno, mas de expressão relacionada a Deus. Segue-se que o que no mundo é “explicatio” corresponde realmente ao racionalmente explicável na ordem do conhecimento.
        A ordem lógica do mundo, essa concepção que tão bem se harmonizará com o projeto de racionalização total que corresponde, a meu ver, ao momento moderno da ocidentalização, encontra no meio chartrense a sua aplicação no interior da teologia filosófica cristã. É o próprio Deus que a ordena, mas é da natureza de Deus que a ordem procede. A razão, que só era aplicável de modo derivado e instrumental, na vertente mística do cristianismo, não precisa esperar pelo século XV para reencontrar a postulação de sua originareidade nessa mesma capacidade de instrumentação. O encontro do Ocidente cristão com as fontes greco-latinas já o permite, pela proposição do cosmo intrinsecamente ordenado por Deus.
Quanto a isso, a relatividade com que se trata o Trivium em Chartres já assinala que a coloração de que o humanismo se revestirá nas academias do Renascimento italiano é de tipo bem especial se comparado ao que poderia ser designado “pensamento retórico” dos humanistas gregos, os sofistas. Contudo, essa posição do Trívium no esquema pedagógico chartrense é algo excêntrica.
O caráter relativo que assinalei está nisso pelo que, conforme sublinha Alliez, o físico de Chartres é gramático, pois como compreender o Timeu sem ser capaz de penetrar a sutileza do mito? Mas a excentricidade reside em que a atribuição propedêutica da lógica ou dialética se torna cada vez menos localizado ao longo do século XII. E de fato a importância da lógica cresce de modo que invade a teologia como condição de seu acesso desenvolvendo-se também paralelamente como arte formal independente das outras disciplinas, isso não sem suscitar protestos e ataques como o de São Bernardo e dos vitorinos.
Talvez o caráter precursor do momento chartrense esteja mais definido como momento de transição da causalidade formal à causalidade eficiente, isto é, das formas exemplares às formas materiais, de Platão a Aristóteles: mesmo que se conserve, como os chartrenses Bernardo e Thierry, a dualidade das formas, preservando assim o equilíbrio bem escolástico entre “expressionismo” e criacionismo, imanência e transcendência, como observa Alliez. Pois a dualidade assim preservada não deixa de fazer ver a possível independência.
Mas retornando à questão do Trivium, agora desdobrada na polêmica suscitada pelo florescimento do cultivo da lógica: João de Sallisbury, que se tornou bispo de Chartres já próximo do final do século XII, posiciona-se quanto a isso conservando a utilidade da lógica como instrumento de investigação mas critica os que a cultivam ao modo de arte pela arte. Interpreta a obra lógica de Aristóteles como plenamente aplicável só à matemática, pois considera o conhecimento humano limitado à esfera do provável. A teologia ou conhecimento das coisas de Deus, eis o que supera todo conhecimento humano.
João é bastante influenciado pelo estoicismo, ainda que limitando Cícero pela dúvida acadêmica, conforme observa Bréhier. Providência e natureza não se contrapõem, mas se pressupõem, conforme o espírito de Chartres. Contudo, João de Sallisbury acentua que em um mundo assim ordenado o poder espiritual tem precedência sobre o temporal, pois é o intérprete da verdadeira lei. Se o príncipe é eleito por Deus ele deve ter sempre bem à vista essa lei que só os padres sabem interpretar. Tal posição situa bem a Escola de Chartres em seu tempo já que, inversamente ao seu caráter precursor em outras questões, o que se verifica progressivamente no interior da filosofia é a tendência para acentuar a independência do poder temporal.
E associado a essa tendência mais laicizante está o personagem que é sem dúvida o mais famoso da época, Abelardo, que após o terrível desenlace de seu caso de amor com Heloísa, se tornou clérigo. Condenado pelos concílios de Soissons e Sens, Abelardo se celebrizou, como professor e escritor, tanto por sua verve dialética quanto pela caracterização de racionalista puro. Mas o racionalismo de Abelardo limita-se à sua paixão pela lógica. Com efeito ele, inversamente ao modelo de Chartres a que se costuma porém aproxima-lo devido à tendência mais geral do espírito, praticamente ignora o cultivo do quadrivium.
Quanto à teoria do conhecimento Abelardo restringe-o no sentido humano pois considera presunçoso “discutir pela razão” o que ultrapassa a condição da humanidade. Ele sempre se considera mais cristão do que filósofo. Isso contradiz profundamente a acusação de São Bernardo pela qual o método de Abelardo pretende tudo guardar à inteligência sem nada reservar à fé.
Se o conflito entre fé e razão tornou-se um problema filosófico, Abelardo não nega a autoridade da revelação mas afirma que pode-se compreender racionalmente o dogma, ao menos até o ponto em que na própria fé se encontra aquilo que não se destina ao compreender mas apenas ao crer.
O que há de efetivo é que, bem antes de Luthero, Abelardo já denunciava a remissão de penitências por dinheiro, questionando o poder dos padres de perdoar pecados. Sua ética sustenta que a moralidade consiste em obedecer à consciência. Em um meio como o do século XII, no qual multiplicam-se as heresias e chega-se a proclamar que o casamento entre monges e monjas deve ser lícito, contudo, malgrado a severidade do seu opositor, São Bernardo, essas teses de Abelardo parecem bastante inóquas e são até mesmo passíveis de explicações em sentido ortodoxo. Em todo caso são bem menos radicais do que poderiam ter parecido na ambientação da polêmica anti-filosófica. O “racionalismo” de Abelardo admite a influência dos espíritos da natureza sobre a alma humana.
Em seu ensino de lógica Abelardo engloba questões de física e metafísica, teoria das causas, relação de matéria e forma. Ele se distingue pela solução “conceitualista” que adota sobre os universais.
 Uma vez que se aceite essa perspectiva que vimos ser comum na época, pela qual as formas platônicas são realidades presentes na mente de Deus e os universais são aplicáveis apenas à designação das coisas do mundo, pode-se propor a solução “nominalista” do problema enunciado em Porfírio acerca da existência dos universais.
Atribui-se assim por vezes a origem do nominalismo a Scott Erigena pois para ele a lógica só tem a lidar com a expressão lingüística. Inversamente, o mestre de Abelardo, Guilherme de Champeaux, havia postulado a realidade do atributo essencial que no indivíduo vai ser diferenciado pelos acidentes. A essência é sempre a mesma, mas as limitações materiais individualizam a espécie assim como as diferenças especificam o gênero. Sua posição define-se, portanto como “realismo”.
Abelardo considera o universal unicamente como termo predicado, que não existe
à parte daquilo que designa. Bréhier questiona a propriedade de se chamar a essa doutrina “conceitualista”. Contudo, Sciacca observa que se Abelardo concede como os nominalistas que o universal é nome, ele o designa enquanto discurso – sermones – a uma realidade significada.
           Penso que conserva-se a legitimidade das três posições bem nitidamente designadas. E Abbagnano assinala que os termos conceitismo e nominalismo foram utilizados na história da filosofia oitoscentista para designar a mesma opção não realista, mas o conceitismo seria assim uma vertente do nominalismo, própria da orientação de Abelardo, que não se confunde com a de Roscelino para quem o universal é simples voz : vox , flatus vocis. Nesse sentido o nominalismo posterior, como o de Ockan, seria inspirado em Abelardo, uma forma de conceitualismo.
           Já aproximando-se do que será uma tendência no período tomista, a reflexão ética de Abelardo se desenvolve posteriormente no sentido de procurar o verdadeiro sentido do dogma cristão racionalmente refletido.
           Considero importante fixar agora as questões peculiares ao século XII: relação entre fé e razão, entre dogmática teológica cristã e cultivo da filosofia e das artes liberais. Relação da ontologia aristotélica com a teologia platônica abrangendo teoria do conhecimento, problema dos universais e da causalidade, gênese, estrutura e formação do mundo. Essas questões, determinadas pela introdução das traduções de texto greco-latinos, desabrocham plenamente a partir do impacto provocado pela ampliação dos horizontes intelectuais no século seguinte, devido à continuidade desse processo de recepção.
           A filosofia oriental, longamente a par desses textos, se torna interlocutora do Ocidente. As Universidades se tornam os centros em que o aristotelismo latino poderá se desenvolver, propiciando uma verdadeira renovação da episteme.
         Se com esse bosquejo constatamos a complexidade do momento chartrense à época de Abelardo, essa complexidade será ainda mais acentuada no subseqüente período tomista.



            5 )
                 

                                                                                     Aristóteles e a teiologia escolástica



O desenvolvimento das traduções de textos de filosofia até então desconhecidos no Ocidente principia no século XII, em que se destacam os trabalhos em Toledo, alcançando a plenitude no século seguinte. As fontes são o árabe, mas também textos importados de Constantinopla vertidos diretamente do grego ao latim. Assim o Ocidente tem já o texto do Político de Aristóteles, desconhecido dos árabes. E São Tomás descobrirá a verdadeira autoria do “Elementos de Teologia” identificando-o como adaptação do “Livro de Causas”, de Proclo, traduzido por Guilherme de Moerbeck. Mas o Ocidente também conta com obras de filósofos do oriente muçulmano e judeus: al-farabi, Avicena, Averróis, Isaac Israeli, Avicebron e Maimônides, entre os mais proeminentes.
Vimos que a leitura oriental de Aristóteles é fortemente neoplatonizada. De fato, as filosofias platônica e neoplatônica oferecem plenamente acesso à “preocupação sobrenatural da alma”, conforme observa Bréhier. Mas ele insere essa expressão justamente no âmbito da comparação da relativa facilidade com que a teologia monoteísta, baseada nos textos de origem hebraica, pode lidar com Platão e Plotino, adaptando-os, em relação ao Aristóteles “puro” que oferece aportes completamente irredutíveis a tal tipo de adaptação da filosofia grega.
Assim, mesmo utilizando uma mescla característica de Aristóteles, Platão e Plotino, já no Oriente a necessidade de conceitos aptos a modular o pensamento aristotélico na perspectiva de transcedência do monoteísmo de origem hebraica se presentificou. O Ocidente assimilou conjuntamente tanto a filosofia aristotélica quanto esses procedimentos de modulação. Contudo, o impacto dessa literatura filosófica ampliada não foi por isso minimizado.
Inversamente o que ocorre é que a soma desses textos “novos” vem se inserir na ambiência de questões próprias, não comuns com aquela específica do Oriente árabe ou de Bizâncio. Há assim duas ordens de fatores pelas quais o impacto é bem maior no mundo latino.
Os fatores que designarei internos por serem constitutivos do domínio em que se desenvolve a filosofia, são aqueles ligados à organização dos estudos. Mas esse caráter interior ao domínio não significa que se trate apenas de uma questão de forma, isto é, do ajuste dessas novas fontes ao esquema canônico do trivium e do quadrivium. Na verdade é todo um como fazer que está em jogo.
Teologias adaptativas inteiramente alegóricas como a de Abelardo, que como os chartrenses reencontra a trindade nas hipósteses de Plotino, e utiliza certos termos de Platão como uma forma figurada de expressar as verdades cristãs expurgando-os de todo “naturalismo”, perfeitamente praticáveis com base nos textos platônicos, se tornam inaplicáveis no caso de textos aristotélicos.
Mas essas teologias respondem a uma necessidade profunda, amadurecida no século XII, de buscar na fé cristã uma estrutura intelectual que pudesse totaliza-la, integrando-a conceitualmente. Assim a filosofia aristotélica deverá vir ao encontro dessa necessidade mas, por sua natureza mesma, impõe uma verdadeira mudança de sentido no interior dessa problemática.
O outro domínio de fatores poderia ser designado externo, mas apenas por razões de simetria – algo contudo não especialmente prezado no gótico. Isto é, para se contrapor qualitativamente àqueles que designei internos. Na verdade esses fatores outros, que se relacionam ao momento político, deixam de parecer meramente contingentes ao curso do que está precipuamente em causa no momento em que se os considera na perspectiva do poder central da época, a hierarquia eclesiástica.
Pois a igreja, como já observamos, não se limita a exercer sobre os estudos uma censura extrínseca já que o tipo de dominação que instaura depende explicitamente do acordo ideológico, de uma adesão à fé que deve ser fundamentada na dependência espiritual da autoridade eclesiástica . Pode-se argumentar que esse acordo nada valeria sem a força do braço secular e que ele só se consegue à custa do difícil equilíbrio com o poder temporal. Pode-se mesmo antepor que toda dominação tem que ser, de algum modo, ideologicamente embasada. Mas resta que seu modo de exercer-se não iguala o do poder temporal assim como uma monarquia se opõe diretamente à outra, jogando-se ambas na mesma ordem material de dominação política.
Com efeito o poder eclesiástico não se confunde nem com o democrático nem com o monárquico. O “feudalismo”, isto é, a independência relativa dos grandes senhores de terras, lhe convém por isso que lhe reserva o espaço de manobra “espiritual” pelo qual o poder teocrático se insinua como meio de referência universal. E vimos como a peculiaridade da interpretação do dogma no Ocidente influi na estrutura do poder eclesiástico independente, de modo não análogo ao que ocorreu no Oriente nem ao tipo de cesaropapismo bizantino.
Portanto ao fator político especialmente eclesiástico, ainda que surja como outro em relação ao que designei “interno” aos estudos,  na verdade só pode assinalar-se uma exterioridade relativa.
A orientação eclesiástica agora se concentra no esforço de assegurar ideologicamente a consolidação do seu domínio. Ao mesmo tempo em que apóia e encoraja a Universidade de Paris, sanciona a Inquisição. Quanto a esse apoio, não se faz tampouco sem exercer-se ao modo de um mecanismo de controle. Franciscanos e dominicanos, as duas ordens igualmente de recém instituição, possuem cátedras reservadas na Universidade.
Principalmente há o objetivo claro de sistematizar toda a produção intelectual em torno da doutrina religiosa sancionada pelo dogma. O papa retém o domínio sobre o ensinamento universitário. Institui-se uma hierarquia entre os cursos. Às “faculdades de artes”, em que se ensinam agora o trivium e as ciências aristotélicas, tanto quanto às faculdades de medicina e direito, impõe-se restrições severas.
A faculdade de arte deve ser muito nitidamente propedêutica, “ancilar” à teologia, matéria aliás de que se proíbe a discussão aos alunos das “artes”. E conforme as ordenações papais, a Teologia deve exercer domínio sobre todas as outras faculdades.
Compreende-se bem a observação de Bréhier comparando o século XII, aquela “renascença” das liberdades do espírito, com o seguinte, à época de São Tomás. Neste, a procura de uma unidade a qualquer preço, mesmo à custa da lógica e da coerência, se impõe não apenas por motivos intelectuais, mas principalmente políticos e sociais.
Mas no Oriente a filosofia neoplatonizada é professada já no século nove. Obtém maior expressão com al-Farabi e Avicena, no século XI, começando por se propor o problema do conhecimento das essências. Enquanto as propriedades dos objetos, dados aos sentidos, assim como os axiomas universais conhecidos por si mesmos, não oferecem nenhuma dificuldade, o conhecimento das essências, logo, a possibilidade da definição, não podem ser atribuídos a nenhum desses fatores.
Postula-se então o intelecto agente, sempre em ato, que: a) pensa sempre as essências ou qüididades como formas universais das coisas; b) concede às coisas sua essência ou forma; c) concede as formas à inteligência em potência. O intelecto agente precisa assim manifestar uma relação fundamental com Deus, o que transforma o sentido original da “ciência do ser enquanto ser”, transpondo-a agora como teologia. Pois como teologia deverá mesclar, ao monoteísmo em que se desenvolve, as influências de Aristóteles, Platão e Plotino.
Em al-Farabi completa-se o seguinte quadro do universo: teologia astral aristotélica, com suas esferas concêntricas e a inteligência que rege cada esfera. Produção de seres neoplatônica. Do Eterno ao temporal como do Uno ao múltiplo. Do ser eterno, o Uno ou Deus, deriva-se o Intelecto.
Esse Intelecto eterno, mas derivado ou possível, apresenta três modos de conhecimento: o conhecimento de sua existência como possível ou de sua matéria. O de si mesmo ou de sua forma (essência). E o conhecimento do Princípio, da fonte de sua existência (Deus). Três modos de conhecimento que correspondem a três seres: o conhecimento que possui de Deus como seu princípio permite ao Intelecto derivar outro intelecto. De sua matéria nasce a matéria da primeira esfera (movimento circular) e de sua forma nasce a alma motora dessa esfera.
Assim na processão a cada intelecto corresponde uma esfera com sua alma, e cada intelecto produz um intelecto subalterno com sua própria esfera e alma motora. A última esfera é a da lua, e o intelecto que a domina é designado “intelecto agente” por ser o que faz os intelectos do mundo sublunar, terrestre, tornarem-se operantes.
Al Farabi produz uma teoria complexa da intelecção humana. O inteligível, isto é, a forma, está misturada com a imagem que se atinge pelos sentidos, aí acompanhada das particularidades individuais. A intelecção procede de modo que, pouco a pouco, dos dados dos sentidos se desdobra o senso comum e deste a imaginação. O inteligível se aproxima então da pureza de sua natureza formal cuja abstração é a capacidade ou potência do intelecto no seu grau mais inferior, o intelecto potencial. O intelecto em ato é a realização dessa capacidade.
Há em seguida o intelecto adquirido que de modo intuitivo apreende as formas na unidade do Princípio. Finalmente vem o intelecto mais superior ou ativo, que é o da lua, possibilitando a atividade de todos os outros sob sua influência.
Esse esquema de al Farabi é aceito por Avicena que torna mais complexa a teoria do conhecimento. Inicialmente há minuciosa descrição do processo de conhecimento das idéias abstratas que corresponde ao intelecto em ato. Esse percebe atualmente as formas inteligíveis que o intelecto material ou possível percebe em potência. Mas o intelecto em ato não se confunde com o intelecto “disposto ou preparado”, próximo do ato, correspondendo ao conhecimento dos primeiros princípios e axiomas, nem com o intelecto “emanado ou infuso” que corresponde ao conhecimento por revelação, como o conhecimento do futuro.
Bréhier mostra como o funcionamento do intelecto em ato é descrito em suas várias operações por Avicena. Alain de Libera localiza essa descrição como uma teoria das faculdades da alma.
Há assim inicialmente a sensação ou senso comum que recebe a forma misturada aos acidentes através dos sentidos. A seguir há a fantasia, vis formans (als-musanwwira) ou imaginatio (khayal), que integra a forma no tempo e lugar em que existe, retendo-a singularmente. A faculdade cogitativa, imaginativa ou coletiva, é a vis imaginativa (mutakkayyila) nos vivos animados em geral e vis cogitans (mufakkira) no ser humano, servindo para compor e dissociar as imagens conservadas na imaginatio. Surge assim a vis aestimativa (wahmiyya), ou opinião, que apreende as intenções “não sentidas” que residem nos sensíveis singulares, isto é, as que são percebidas não imediatamente pelos sentidos exteriores. O exemplo típico de “intenção” é a periculosidade do lobo captada pela ovelha. Na alma racional ocorre ainda, sob a influência do intelecto agente, descoberta das formas abstratas, operações lógicas e reflexivas, conforme Bréhier, a vis memorialis (hafiza) ou reminiscibilis (dhakir) que retem as intenções captadas pela estimativa, conforme Alain de Libera.
É interesante observar que essas operações são concebidas como atividades corporalmente localizadas, conforme a “doutrina celular” de Qusta b. Luqa, reportada por A. de Libera, que prevê para cada “célula" ou ”concavidade” do cérebro a associação de uma função específica. O senso comum tem lugar na concavidade anterior, a fantasia na extremidade da concavidade anterior, a imaginativa na concavidade mediana onde se situa o vermis cerebeloso, a estimativa no cume da concavidade mediana e a memorial na concavidade posterior.
Subsiste porém, de modo aparentemente paradoxal, em Avicena, a tendência a postular o conhecimento tanto mais perfeito quanto menos dependente do corpo. Os sonhos proféticos são explicados em sua validade pela inclinação do intelecto agente sobre a imaginação enquanto o conhecimento intelectual das essências não é possível por si mas apenas concluída dos próprios – conforme Aristóteles, o próprio é aquilo que não se constitui como definição, por exemplo o ser racional do homem, sendo contudo peculiar a ele, por exemplo, a capacidade de rir ou de estudar gramática.
Quanto a isso é legítimo não somente recordar a convergência de neoplatonismo e aristotelismo, manifesta por exemplo na hierarquização dos intelectos e esferas, mas também a influência do sufismo iraniano quanto à caracterização do conhecimento anímico.
O que há em comum nessas teorias do conhecimento de al Farabi e Avicena é, inicialmente, que ambos supõem Deus como pura inteligência que, conhecendo sua essência, conhece todas as coisas. Propõem também a emanação e a processão pelas quais derivam-se os intelectos, almas motoras e matérias das esferas que se movimentam uniformemente imitando o intelecto de que derivam. Finalmente postula-se a esfera da lua como intelecto agente que produz o conhecimento nos intelectos sob sua influência e concede às coisas sua forma ou essência.
É importante observar que a relação substancial de matéria e forma está assim sendo proposta como concessão a partir de um “datur formarum” – inteligência “superior e exterior” à natureza, como ensina Bréhier. Ora, é sob esse ponto que incide a crítica de Averróis, já agora no século XII.
O ser natural que Aristóteles soube tão bem pensar em sua unidade substancial é proposto nessas interpretações neoplatonizantes a partir da dualidade mais irredutível. Forma e matéria são pressupostos, conforme o peripatetismo original, sob a relação ordenadora do devir com o conhecimento abstrativo, não como modos irredutíveis de ser. Assim Averróis restabelece a teoria aristotélica mais autêntica ao propor que a forma só se introduz na matéria por alguma forma já existindo materialmente: o homem engendra o homem, conforme a teoria da geração unívoca.
Mas é a teoria aristotélica que se constituiu na consistência grega da imanência que se torna, como vimos, incompatível com os pressupostos do monoteísmo. Assim, o problema que Bréhier enuncia como aquele que se impôs aos filósofos árabes: como conciliar essa metafísica da multiplicidade que abrange os princípios de que se deriva tanto a teologia astral quanto a física, com o princípio único professado pela religião?
E aquele, que a recepção ampliada dos textos aristotélicos impõe ao Ocidente: defrontar-se com essa teologia que, ao invés de “explicar” a física dela distinguindo-se por princípio como radical exterioridade, nela justamente se prolonga. Com efeito, o estudo do motor imóvel é intimamente relacionado ao dos corpos móveis de maneira que o próprio estudo da alma, como forma do corpo organizado, no peripatetismo integra a física, não a teologia.
Al Farabi e Avicena propõem como solução a necessidade enquanto atribuição intrínseca ao ser supremo. Isso ressoará ainda em Spinoza. Só Deus é causa sui, causa de si, isto é, não causado por nenhuma outra causa, mas derivando seu ser apenas de sua própria necessidade. Al Farabi e Avicena enunciam então que Deus é o “ser necessário”.
Tudo mais pressupõe uma existência apenas possível dependendo do ser necessário para que a possibilidade se efetive como realidade. É a célebre tese da neutralidade da essência, isto é, à essência é indiferente a atribuição da existência que pode apenas lhe ser extrinsecamente acrescentada pelo ser necesário. Conhece-se a repercussão dessa tese, via Ettienne Gilson, no pensamento ocidental: Deus será concebido como existência pura, sendo que sua essência é existir.
A distinção entre essência (res) e existência (ens), que se origina com al-Farabi será introduzida na escolástica latina por Guilherme de Auvergne, a partir da oposição entre o quod est e o quo est. O quod est, enquanto essência ou aquilo que a coisa é, conceitua-se como potência. O quo est, enquanto aquilo em que a coisa é, sua existência enquanto aquilo que é, conceitua-se como ato. A essência é potencial à existência enquanto atual.
Essa tese característica da Escolástica, desenvolvendo-se como aristotélica, na verdade não pertence ao peripatetismo grego original em que, conforme Abbagnano, equaciona-se o ser ou existência com o ato e o ato com a forma. Na tese Escolástica a forma, essência ou substância são potenciais. Forma e matéria são potência em relação à existência que é ato. Pode-se assim, antes de desenvolver a ambiência propriamente ocidental da filosofia à época de São Tomás, precisar a importância do momento oriental em que se postula de modo pioneiro essa tese. Nasce aí aquilo que Heidegger designará “teiologia” definindo-se como “entre-implicação” de ontologia e teologia, conforme a expressão de A. de Libera.
Vimos como o projeto metafísico aristotélico não se confunde com a filosofia primeira ou teologia. Essa é a tese de Aubenque, parecendo-me a mais correta. O que ocorre na assimilação monoteísta do peripatetismo resulta na teiologia como impossibilidade dessa mesma tese.
A metafísica é considerada como filosofia primeira, e isso até mesmo por Averróis, não obstante seu desacordo fundamental com Avicena a propósito do objeto da metafísica. Avicena pretende que esse objeto é o ser enquanto ser (ens inquantum ens), mas cabendo-lhe também provar a existência de Deus. Averróis sustenta, inversamente, que a existência do motor imóvel, Deus, deverá caber à física demonstrar.
Mas se Averróis reserva assim à metafísica apenas o estudo da substância, em grego Ousia, esta deve limitar-se como substância imóvel, isto é, o objeto da ousiologia se subsume às substâncias “absolutamente separadas do movimento e da matéria conforme o ser e a definição”, de acordo com o Guia do Estudante Parisiense, citado por de Libera. Adota-se assim implicitamente a tese averroísta da ousiologia como teologia da substância imóvel, já afirmada por al Farabi.
A relação da filosofia aristotélica com a teiologia é, pois,  complexa. Não há originalmente, a meu ver, na metafísica genuína de Aristóteles, a postulação do objeto efetivo como sendo o “verdadeiro ser” ou o “ente supremo”. Mas somente com a introdução do peripatetismo se ultrapasa a teologia puramente platônica de modo a postular uma ousiologia que engloba o estudo do ser enquanto ser.
É assim que há agora espaço para uma controvérsia como a que opõe Avicena e Averróis quanto à dualidade ou à unidade substancial dos seres naturais, enquanto o platonismo propõe unicamente a dualidade radical de matéria e forma. Mas não me parece haver dúvida de que a teiologia se articula como leitura da filosofia aristotélica no âmbito da transposição de planos, desde a consistência grega àquela que se caracteriza na filosofia do mundo feudal.
Nessa leitura se pode mesmo constatar o afastamento da doutrina original, assim como recuperada, quanto a isso, por Aubenque, de modo bem claro na Summa Thelogiae de Alberto Magno. Sustenta-se aí que o objeto próprio da metafísica é aquele da teologia enquanto é o “objeto segundo” precisamente o ser, com suas “partes” e “paixões”: uno e múltiplo, potência e ato, possível e necessário. Comparando com a tese de Aubenque pode-se mostrar que há assim inversão real de perspectivas.
Mas com Alberto Magno, mestre de São Tomás, já se está em plena ambiência do aristotelismo latino, que por sua amplitude e complexidade deveremos estudar mais detidamente. Quanto ao pensamento judeu, destaca-se inicialmente Avicebron, que se torna, à época de São Tomás, uma das fontes mais importantes do neoplatonismo.
Preocupando-se com a relação de matéria e forma, sustenta ele a emanação das coisas em relação à origem de modo que quanto mais afastadas dessa origem mais as coisas se tornam dispersas, e quanto mais próximas, mais unidas. A forma universal, o mais alto nível da realidade, contém todas as formas unidas. A realidade sensível as contém separadas. A inteligência, entre esses níveis extremos, une as formas, mas considerando-as singularmente.
A cada nível da realidade corresponde uma espécie de matéria. Quanto mais perfeita a matéria, tanto mais superior o nível de realidade a que pertence, sendo o critério a proximidade da fonte. A hierarquia ascende assim das substâncias corporais à matéria das substâncias espirituais ou almas, destas às substâncias simples ou inteligências e finalmente à matéria universal a que corresponde a forma unviversal.
Enquanto as formas estão conjuntas na inteligência por uma união espiritual essencial, a união que agrega a forma à matéria corporal permanece contingente, conforme a perspectiva intrínseca ao neopolatonismo que, como assinala Bréhier, não considera a inteligência como na dependência da realidade material mas a localiza entre o Uno e o múltiplo.
Isaac Israeli e Maimônides são também pensadores importantes do período. A Isaac Israeli se deve a famosa definição de verdade como adequação das coisas e do intelecto: adaequatio rei et intelectus. Maimônides sustenta a tese da essência potencial em relação à existência atual, mas modulando-a de modo que a existência se torna acidental por relação à essência. Maimônides propõe também o acordo de fé e razão de modo que a autonomia da filosofia não a exime de confirmar as verdades da fé. Essa proposição se torna bastante aproximada desse acordo universal que designa a orientação da igreja no Ocidente, como vimos, nessa época.
Na verdade ela embasa a unidade espiritual que marca o apogeu da Escolástica, mais como clichê derivado da orientação da igreja do que efetividade do estado de coisas que se mostra bastante complexo devido ao crescendo de influxos não convergentes que envolvem desde a defasagem de cristianismo e pensamento genuinamente grego ao fortalecimento da tese da autonomia do poder temporal.
Pode-se ver nesses itens uma continuidade. A razão humana se encontra cada vez mais conceitualmente instrumentalizada de modo a poder vir a basear uma nova imagem do pensamento, na qual sua autonomia não mais poderá ser contestada. Segue-se que essa autonomia deverá estender-se como autocompreensão humana mesma, impossibilitando as dominações de tipo teocrático do feudalismo. Com efeito, já no século XIV, razão e fé estarão completamente separadas. É  a trajetória do teocentrismo ao humanismo, ou desenvolvimento do aristotelismo latino, que ensejará a compreensão dessa nova era – o Renascimento.


        
6 )
                                                                                São Tomás: escolástica e ocidentalização



Em vários aspectos penso que se pode afirmar que a filosofia de São Tomás opera como ponto de fusão na transformação do momento cristão ao moderno da ocidentalização. Assinalo assim que há transformação conceitual no tomismo, pela qual certas noções fundamentais podem ser apresentadas de modo que já embasam o Renascimento enquanto a irredutibilidade daquilo que a este não poderia informar se torna patente, progressivamente devendo derivar seu sentido relacionando-o às transformações em causa.
O problema da relação entre fé e razão já se propõe aí em outros termos, como se sintetizasse o sentido novo dessas noções – revelação, razão – em que a filosofia posteriormente deverá estabelecer o plano de sua elaboração.
Aparentemente a posição tomista está na retaguarda relativamente, por exemplo, aos averroístas que, como Siger de Brabant, opositor de São Tomás na Universidade de Paris, sustentam a independência ou autonomia de fé e razão que efetivamente caracterizará o Renascimento. São Tomás propõe que a teologia controla os erros dos filósofos naquilo em que a filosofia possa afirmar de impossível à viabilidade do projeto teológico.
Aceita porém que as verdades relativas a cada campo não são as mesmas. Assim restabelece-se, novamente de modo aparente, a repartição de tarefas que tanto favorece a inclinação do dogma eclesiástico.
À razão cabe “sistematizar as verdades naturais” , conforme a expressão de Sciacca, e prover a defesa da teologia enquanto a fé completa com a revelação esse objetivo. Torna-se patente assim o caráter ancilar da filosofia em relação à teologia.
Mas o que se está entendendo agora por Teologia? Etienne Gilson propõe a questão no início de “A Existência em São Tomás”. Ora, assim como se desenvolve aí, a questão se encaminha para a afirmação tomista de uma identidade de objeto entre filosofia e teologia. Esse objeto é a origem de toda ou qualquer verdade. Se a metafísica é a busca dos primeiros princípios e se a verdade pertinente ao princípio é a fonte de toda verdade, a teologia coincide com a filosofia nisso pelo que ambas tem por objeto conhecer a Deus – já que “as coisas têm na verdade a mesma ordem que têm no ser”, conforme a expressão de Gilson.
Enquanto Santo Agostinho, o Doutor da Graça, propunha que o conhecimento natural é dependente da revelação, São Tomás, o Doutor Angélico, o afirma independente em seu domínio. Contudo esse domínio jamais atinge aquele mais excelso que é o das verdades da fé. O “revelatum” é aquilo que essencialmente só pode ser conhecido por esse meio, a revelação. A razão por si mesma não o descobre.
Mas ocorre que aquilo que a razão descobre, se verdadeiro, por mais humilde que seja o seu âmbito de ação, conforme observa Bréhier, não pode deixar de atingir plenamente o ser. Portanto há algum campo comum entre o revelado e o racionalmente conquistado. Isso que há em comum, constituindo-se como filosofia, integra a teologia. Quanto ao que na teologia é supra-racional, transcendendo a razão, pode também ser esclarecido pela razão.
Assim São Tomás justifica a fundação de uma Ordem Religiosa dedicada aos estudos. A verdadeira finalidade desses estudos sendo a compreensão da Sagrada Escritura. A teologia muda de sentido. Fazer teologia até esse ponto podia ser definido como partir de uma verdade revelada como premissa para dela chegar a alguma conclusão. Com São Tomás fazer teologia é “fazer conhecer melhor o sentido da verdade revelada”, conforme Gilson. É portanto utilizar todos os “reveláveis” ou elementos passíveis de integrar o conhecimento teológico.
A teologia assim concebida pode ser pensada ao modo de uma super-razão. Pois o “revelatum” do conteúdo do cristianismo, se pensado como algo mais que razão, isto é, como autoridade das Sagradas Escrituras, não pode deixar, por sua vez, de ser defensável pela razão. E como vimos, trata-se sempre do mesmo objeto enquanto fonte da verdade.
Sciacca observa ainda que a afirmação tomista da suficiência da razão em seu domínio é algo característico do Renascimento. Mas penso ser importante notar que o que ocorre assim seria menos a antecipação de uma noção do que a transformação de certos termos axiais. A teologia como ciência que engloba a filosofia e todas as outras ciências como suas partes supõe a transição do momento cristão da ocidentalização naquilo em que se articula a transposição da noção mesma de revelado.
Pois inicialmente a Revelação cristã compunha-se como transposição poética do originário, em relação ao trabalho do conceito tal como vinha se desenvolvendo na Grécia. E isso pode ser observado pela comparação entre o pensamento retórico e a imagem racional do pensamento em vias de se desenvolver nas filosofias aristotélica e platônica.
A crítica sofista “iluminista” do mito não acarretava a contraposição ao caráter auto-poiético do discurso, enquanto consensualidade provisória na via de uma legitimação por paralogia, no sentido de Lyotard. Enquanto a utilização platônica e explícita do mito buscava na realidade balizar um tipo de certeza que se poderia associar ao desempenho, racionalidade destacada ou oposta ao devir como realidade imutável do conceito - a forma, idéia ou essência, nisso vindo a relançar formalmente a imagem dogmática de toda doxa ao invés de estar efetivamente se colocando como conhecimento acima das fllutuações da opinião.
Assim pudemos estabelecer certos paralelos do cristianismo, na ambiência do cristianismo primitivo, com a retórica hermenêutica e aquilo que havia sido negligenciado na formação racionalista do conceito. Isso foi possível através do elemento da revelação enquanto acesso a uma compreensão de mundo que, como vimos anteriormente, se instala desde o início no âmbito da palavra. Mas o que se seguiu foi a utilização dessa mesma formação no âmbito de uma dogmática que operava aquela transposição decalcando o poético revelado, enquanto conteúdo mítico das Escrituras, da forma conceitual – sendo isso o nascimento da teo-logia nesse sentido ocidental e cristão.
O problema de razão e fé subsistiu enquanto esteve subjacente à insolubilidade dessa tentativa, visto que o poético enquanto poético, isto é, o dado mítico da revelação, nunca poderá de fato ser cem por cento transposto conceitualmente, subsistindo apenas como conteúdo da fé. No entanto o problema se resolve no momento em que se encontra no objeto último daquele dado mítico o mesmo objeto de toda investigação racional no seu sentido metafísico.
Ora, isso só se torna possível ao precisar-se o sentido da metafísica como a “ciência do ser enquanto ser” aristotélica. Porque a fonte da verdade, de toda ou qualquer verdade, sendo o originário, é Deus ou o Ser, conforme São Tomás, mas Ser com o sentido de Existir.
Com efeito, enquanto o ser foi proposto no sentido platônico e neoplatônico, na base de uma identificação com a essência ou forma, essa transposição racional do poético não se possibilitou. Cabe agora compreender o que está em jogo nesse sentido de Deus como existência pura.
Em Avicena o conceito do “ser necessário” engendra uma relação com o possível na qual se joga, conforme o estudo de Ernst Bloch, o destino da matéria. Mas se estabelece assim o aporte numa base mais ampla do que a do conceito, isto é, a da modalidade. O possível é tão “por si” quanto a forma. Contudo, se a lógica da modalidade resgata a eternidade da matéria primeira concebida como potência ou possibilidade totalmente destituída de forma, a metafísica da substância utiliza a noção de matéria segunda como já informada: matéria universal efetiva na concretude do existente.
Essa matéria segunda exibe então uma preformação a que o ato com que Deus a carrega de realidade efetiva vem como que motivar. Por si mesma a pré-informação da matéria segunda dispõe o que vem a ser como substância deste ou daquele ente. A disposição material é a referência a uma determinada forma. A forma é a “verdade ígnea” ou “fogo imanente” da matéria.
Averróis aprofunda a concepção liberada de matéria que se encontra em Aristóteles, na imanência da “natura naturans”, natureza naturante, correspondendo à matéria concebida originariamente como contendo todas as formas. O movimento celeste, circular, portanto também fundamentalmente material, atua como elemento que faz a forma substancializar-se, individualizando-se como os entes da “natura naturata”.
Esse naturalismo materialista avant-garde em relação ao Renascimento – Alliez assinala a convergência do pensamento de Duns Scottus atuando já no século XIV com Avicena e Ernst Bloch mostra que essa valorização da matéria deverá prosseguir em Giordano Bruno – não poderia ser professado no âmbito de uma doutrina cuja intenção permanece sendo a afirmação da transcendência conforme a leitura de Aristóteles com base no texto das Escrituras.
É preciso então constatar os nódulos que constituem a inflexão do texto bíblico sobre a doutrina aristotélica de modo a ver que é nesses mesmos lugares que se processa a ruptura do tomismo em relação à “filosofia oriental”, como também ao assim designado averroísmo latino de Siger de Brabant.


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Gilson analisa extensamente a singularidade do tomismo assinalada já em relação à leitura de Santo Agostinho aplicada ao trecho do Êxodo em que Deus responde a Moisés: “EU SOU aquele que sou”. O De Civitate Dei agostiniano traduz: “Ó Deus, ó Senhor nosso, qual é o vosso nome? Meu nome é É.” “Quem É enviou-me a vós”.
Santo Agostinho interpreta esse trecho identificando o ser com a substância no sentido da essência. Assim, conforme ele, “essentia” vem de “esse”, ser. A esência é o que é, o ser, uma vez que é aquilo que permanece, subtraindo-se ao devir. O “Eu sou” do texto bíblico significa: permaneço, sou eternamente aquilo que não muda.
Gilson localiza o avanço tomista, em relação a essa interpretação de Santo Agostinho, no Contra Gentiles, como se o salto se verificasse entre os capítulos 21, que ainda está na linha da esência, e o 22, em que se estabelece algo mais que a essência, isto é, a entidade, o fato de ser, concebido como existência atual. Deus é puro ato de ser, sua essência é o seu ser ou o seu estar eternamente sendo. Deus é identificado com o ato “sem o qual nenhuma essência existe”.
O ato de ser que é o Deus do tomismo não se conceitua como a necessidade conforme a doutrina de Avicena. Tampouco o ser se acrescenta acidentalmente à esência, conforme a conclusão que Maimônides vai deduzir da filosofia greco-árabe. A tese de São Tomás é enunciada do seguinte modo por Gilson: “Deus é o ente cuja essência é o seu próprio ato de ser. Todos os entes, com exceção de Deus, têm a sua essência distinta de sua existência. O efeito primordial da essência é restringir o ato de ser às dimensões determinadas pela definição daquilo que a essência é”.
A essência é concebida assim como limitação do ser, finitude, o ser algo, “aliquid”, restringindo o puramente ser. Deus é absolutamente simples, não composto de essência e matéria, mas essência pura, ato puro, ato existencial sem limitação uma vez que sua simplicidade também significa que à sua essência não vem se compor a existência mas ser aquele que é implica que em Deus o ato de ser é aquilo que a essência é nos outros entes.
Avicena havia afirmado que Deus não tem essência justamente para dar conta dessa simplicidade de Deus enquanto puramente existente. Mas São Tomás conserva o vocabulário da essência pois não ter essência equivale a não ser pensável. Identificar a essência de Deus com o ato existencial resolve o problema de pôr a essência sem a limitação que ela exige. Mas a essa limitação reserva-se o importante papel, do lado das essências finitas, de esclarecer o modo pelo qual a existência vai se compor com elas.
Se Deus é absolutamente simples, a atualidade existencial das essências exige que sejam compostas. Com exceção de Deus, todo ente se compõe do quod est e do quo est, daquilo que ele é enquanto essência ou qüididade e do seu ato de ser pelo qual existe.O ato de ser é a perfeição dos entes. Se a alma é a forma do corpo no ser humano, o ato de ser é ato e perfeição da alma. Como glosa Gilson, é melhor ser o Ser do que ser algo, mas é melhor ser algo do que nada ser.
Esse ato corresponde à participação do ente no ato de ser supremo de Deus. A essência será justamente aquilo que diferencia o participante do participado, logo aquilo que dá conta da imperfeição dos indivíduos que não são Deus. Ser é o ato de todos os atos. A essência constitui assim uma espécie de valor negativo. Mas se o ato de ser está em comum , de algum modo, entre Deus e os demais entes, nasce aí a noção de analogia do ser.
O valor negativo da diferença é o que embasa a afirmação de que o ser é análogo. Deus é, todo outro ente é, são duas afirmações referentes ao ser. Formalmente parecem estar dizendo o mesmo, mas na verdade, conforme São Tomás, a atribuição de ser aos entes e ao supremo ente é feita somente na base da semelhança, por analogia .
           Essa utilização da relação analógica não se declina ao modo daquilo que os escolásticos designavam como analogia de atribuição, isto é, o significado diverso que um termo pode assumir conforme a sua atribuição a este ou àquele ser. Assim, conforme Abbagnano, a analogia de atribuição é aquela que consigna por exemplo a referência de um mesmo termo a Deus e às outras criaturas.
Mas o conceito que está em jogo especialmente quanto à significação do ser, em Deus e nos outros entes, é designada como analogia de proporcionalidade. Deus e os outros entes não são no mesmo sentido, realmente. Em Deus o ser é a essência, nos entes finitos é o elemento que se compõe com a essência. Deus é o seu ser, os entes têm ser. A definição dos entes finitos será: uma essência dotada de um ato de ser.
Como observa Aubenque, secundado nisso por Abbagnano, Aristóteles mesmo ignora a analogia do ser. Não se pode derivar essa noção tomista, que no entanto lhe é atribuída, desenvolvida no âmbito da relação entre criador e criaturas, como já implícita na relação do um e do múltiplo, do ser e das categorias. A solução tomista analógica não recobre na verdade a questão da homonímia do ser no projeto ontológico aristotélico. Contudo essa atribuição tem sido muitas vezes afirmada desde São Tomás, inclusive por intérpretes contemporâneos.
       Retornando à doutrina de São Tomás, sempre se está considerando o ser no sentido de existência atual. A originalidade da tese tomista é enorme se comparada à noções mais correntes como a que identifica o ser, no composto substancial de forma e matéria, com a forma ou essência. Não que o ser seria o abstrato como ente de razão, mas a realidade da essência na atualidade da existência. Ou como a tese da “essência real”, de Suarez, que consiste em reduzir a existência à substância, uma vez que ser, é ser uma coisa, tese que Gilson identifica enquanto contraposta ao tomismo original se bem que o próprio Suarez a tenha apresentado como sendo genuinamente tomista.
O objeto da metafísica tomista não repousa na forma ou na substância, isto é, em todo caso no qüid enquanto aquilo que se diferencia como ente finito e singular, mas no ser. Se fosse circunscrita à forma, como se poderia implementar a síntese teológico-metafísica efetivada por Tomás?
Mas que é agora o ser? Pode-se avançar a resposta afirmando que ser ou “Esse” é o ato. É o princípio cuja existência se conhece pelo efeito que causa. As operações que os entes efetivam são efeitos do ato pertinente a suas formas, como tudo o que o ser humano faz é devido à sua alma. Mas a forma não explica a existência. O ato de ser não se concebe, em São Tomás, por simples contraposição à potência, mas sim pela identidade ao ser.
Ato e potência são condições dos entes. Mas ato existencial é ser, existência atual. Nesse sentido nada mais oposto ao pensamento de São Tomás quanto considera-lo acidental à forma. O que São Tomás propõe é que à substância, composta de forma e matéria, é amalgamada estruturalmente a existência atual, sendo este ato de ser possuído como perfeição, isto é, como a realidade do seu poder ser. Nesse sentido ao invés de casualmente acrescentado, o ser é causalmente constitutivo de tudo aquilo que é.
Isso não significa que o mundo apresente o caráter de necessidade, derivando-se de Deus. Inversamente, São Tomás está nos antípodas de Leibniz como também afasta-se da posição de Avicena.Com efeito, a contingência do ser criado surge com Avicena de certo modo coerentemente justificada, assim não tão contingente, a partir da relação modal. O que é possível em si é necessário com relação a outrem. Deus é ser necessário, mas tanto que não poderia agir de modo diverso do que faz. Leibniz pretenderá interrogar sobre a razão suficiente do mundo: porque há o ser, não antes o nada? E conhece-se a doutrina do melhor dos mundos.
São Tomás responderia que Deus criou o mundo, mas não há causa pela qual deveria te-lo feito. E sempre poderia te-lo feito melhor. Mas compreendendo-se o que Deus é, identificando sua natureza com o ato de ser, basta que se tenha desse ato a noção adequada para que se penetre o sentido mesmo da criação. Ora, a natureza do ato é agir. Criar é produzir o ser das coisas, causar a existência atual. Participar, comunicar o ser, é próprio do agir de Deus. Todo ser criado participa do ser. Mas só Deus é “o” ser. Ser criado é ter recebido o ser. As substâncias ou entes finito recebem o ser de Deus por si mesmas. Já aquilo que as compõem, a forma e a matéria, são apenas concriadas juntamente com elas.
Mas para sustentar o criacionismo São Tomás faz intervir uma modulação na teoria aristotélica das causas. Sabe-se que entre as quatro causas, em Aristóteles, há a motriz, como aquela que é apta a engendrar o movimento. Mas o movimento é sempre algo que só se compreende como tendência ao seu objetivo, seu “telos”. O movimento tem uma finalidade. Assim a teoria aristotélica pôde assimilar Deus ao motor imóvel. Não há finalidade aí causada por algo alheio mas, inversamente, tudo tende para Deus. Em compensação o modo como Deus faz a potência vir ao ato, em Aristóteles, é físico. O motor mais exterior põe em ato o movimento circular que convém à matéria celeste.
Se São Tomás identifica os entes como aquilo que recebe a existência, ele não utiliza a definição complementar a essa, a saber, a de Deus como puro ato existencial, ao modo de uma prova ontológica da existência do ser supremo. Quanto a isso São Tomás conserva a orientação de Alberto Magno. Bréhier e Bloch mostram assim que ao tipo de argumento ontológico de Santo Anselmo que identificava o ens perfectissimum ao ens realissimun, isto é, Deus perfeito a Deus existente, Alberto Magno contrapõe que a razão só pode proceder dos efeitos às causas, não o inverso.
A prova só pode ser cosmológica, consistindo em remontar do fato de que o mundo existe à dedução de alguma causa dessa existência. São Tomás considera igualmente a demonstração “propter quid” – da causa ao efeito - inacessível à mente humana que só pode operar as demonstrações “quia”, partindo dos efeitos. Assim São Tomás desenvolve as famosas cinco vias de prova, derivando-as de princípios aristotélicos: necessidade do motor imóvel, necessidade de uma causa eficiente primeira, evidência do ser necessário a partir dos seres possíveis, posição do verdadeiro absoluto como ser absoluto, exigência de que o mundo tenha governo.
Como observa Bréhier, a segunda via utiliza uma noção de causa eficiente não de todo idêntica à noção aristotélica original de causa motriz. Quanto a isso Gilson mostra que em são Tomás somente Deus pode causar a existência atual enquanto por exemplo, o artesão, só pode criar algo a partir tanto do fato dele mesmo ter sido já criado quanto da existência prévia da matéria que ele fará “ser” deste ou daquele modo.
Na doutrina aristotélica estrita só se lida com essa noção de causa eficiente, isto é, ao modo do artesão. Na doutrina tomista a “causa eficiente” é na verdade “causa criadora”, que Aristóteles não deveria jamais propor já que sua concepção de universo compreende a eternidade sem criação ex nihilo.
Essa modulação da causa eficiente já se havia formulado em Avicena. Gilson a identifica com a causalidade transitiva – algo que não se assemelha a outra coisa mas que no entanto é causa dessa outra coisa - que na modernidade virá a ser objeto, com David Hume, de uma crítica efetivamente demolidora. A utilização que São Tomás implementa dessa noção nova, nesse contexto, de causalidade, é de modo a faze-la intervir na teoria do ser de modo a alterar profundamente a conseqüência que dela se deriva na doutrina de Avicena.
Ao invés de uma lógica da modalidade, opondo necessário e possível, a causa que conduz ao ser permite pensar o ser como aquilo “que há de mais íntimo nas coisas”, conforme o texto da Summa Theologica, isto é, o “princípio formal” em relação a tudo o que há na coisa. Resta que se afirma assim a onipresença de Deus – por seu Esse – em todas as suas criaturas. Logo, conforme Gilson, “Eu Sou” é o ser do qual se deve esperar o ato de criação.
Ser é causar ser. E Deus se conhece a si mesmo como participável por seres criados, a multiplicidade de suas idéias correspondendo à infinidade de possibilidades dos modos finitos ou essências. Cada essência espelha Deus como comunicável em um dos seus modos de participação. Todo ente finito é passível de definição, expresando assim ao mesmo tempo sua participação em Deus, como idéia, e sua limitação existencial.
E isso ainda mais porque a individualização faz intervir uma noção de matéria que não se confunde com a composição geral de forma e corpo enquanto característica da espécie. O que vai designar a pluralidade dos indivíduos no interior da espécie é uma matéria não específica mas “signata”, isto é, considerada sob dimensões determinadas. A matéria signata assinala a imperfeição ou o modo de deficiência individualizante pelo qual recebe a forma. Em todo caso trata-se do valor negativo da diferença, uma diminuição da atualidade do ser, conforme Bréhier.
Mas a inteligibilidade mesma da essência é proporcional a essa limitação, a quantificação do ser ou seu grau de perfeição relativa. O ser infinito não seria inteligível para nós precisamente por não ser definível ou restringido em sua essência. Eis porque a metafísica é sempre como aquilo que força a pensar, de modo algum a espécie de conhecimento como a que tem por objeto os entes finitos em que o pensamento se desenvolve como que por um exercício natural e se encontra tão à vontade.
Ora, a essência, longe de ser neutra, exibe aptidão ao ser. Surpreendentemente, o universo criado é de certo modo eterno mesmo em São Tomás, pois Deus o criou desde a eternidade. Nesse ponto a doutrina tomista é bastante sutil contrapondo-se por exemplo à tese de Siger de Brabant que apóia o averroísmo sustentando a eternidade do mundo como antitética ao criacionismo. São Tomás pretende, inversamente, fazer convergir eternidade e criação.
Argumenta assim que nada tende para o nada, mas tudo tende a ser. A matéria mesma permanece indestrutível como sujeito de geração e corrupção. O mundo criado por Deus é o mesmo mundo natural que tem por objeto a ciência. Conforme o Eclesiastes “as obras que Deus fez continuam para sempre”.
Contudo, se as formas materiais têm como única função atualizar a matéria, no caso do ser humano o ser é o ato da alma e só através desse ato anímico vem a ser o ato do corpo. Forma absoluta, independente da matéria, a alma é “substância intelectual”. Anima o corpo mas também conhece, estando apta a realizar operações puramente espirituais pelas quais não materializa em si o objeto que conhece, mas dele assimila a espécie puramente inteligível. À espécie expressa, como definição da coisa enquanto termo da operação intelectiva, corresponde assim à espécie impressa pela qual o intelecto compreende a coisa.
Se Aristóteles afirma a incorruptibilidade das substâncias espirituais, São Tomás estende essa atribuição à alma humana. É por isso que o tomismo se contrapõe às interpretações do intelecto agente como comum e separado, constantes tanto do peripatetismo árabe quanto no averroísmo latino de Siger de Brabant. Afirma, inversamente, a unidade do intelecto.
O que permanece afim ao peripatetismo oriental é a operação intelectual descrita como abstração da forma a partir das imagens que se elaboram por sobre os dados dos sentidos. Mas a partir daí o peripatetismo latino de São Tomás vai afirmar sua originalidade reduzindo a dois os intelectos necessários à operação. O agente é o que extrai as formas das imagens, o possível ou passivo é o que recebe essas formas abstratas. Ambos pertencem à alma. O ser humano é, desde agora, autônomo sujeito de conhecimento.

    
         7 )
  
                                                                                                    O (novo) lugar do Rei


           Com São Tomás já se pode afirmar, como vimos, efetivamente o sujeito de conhecimento. Mas também se poderia grafar: sujeito de conhecimento.Com efeito, basta que se acentuem certas posições tomistas, mais especialmente, aquelas que se anunciaram como verdadeiras rupturas em relação à ambientação platônico-agostiniana que afinal configurava a dogmática eclesiástica desde a patrística, para se ver surgir a tonalidade de pensamento realmente nova que se estabelece em continuidade, desde essa época, com o século XIV e o Renascimento.
          Afirma Bréhier, contra a atribuição de agostinismo ainda aceita por Sciacca, a irredutibilidade do pensamento de Duns Scott, seja ao tomismo, seja a Santo Agostinho. É interessante notar que em apoio a essa tese Bréhier cita as proposições características das correntes agostinianas que Scott critica. Mas ao enumerá-las Bréhier condensa justamente os pontos controvertidos enfrentados pelo tomismo a partir do agostinismo.
A teoria do conhecimento aristotélico-tomista se opõe à via da iluminação de Santo Agostinho. Contudo o tomismo inova também por sustentar o intelecto agente não separado, em relação aos demais intérpretes do aristotelismo. Ora, é a acentuação radical desse sujeito de conhecimento em Duns Scott que vai conceder ao intelecto possível a autonomia do ato mesmo de compreender, enquanto o intelecto agente permanece apenas como capacidade abstrativa que distingue a forma específica da imagem sensível.
A compreensão se relaciona ao objeto fornecido pela abstração do sensível, mas tem papel autônomo em relação a essa abstração. Resta que o sujeito se commpreende assim como fonte do processo intelectivo cujo produto tem sua validez assegurada tanto porque o sujeito apreende a evidência dos princípios quanto porque se pode obter a certeza seja pela via da experiência, seja pela via interior do conhecimento dos fatos da consciência.
Mas esse sujeito autônomo de conhecimento é ele mesmo concebido como algo mais compreensível em si do que por sua mera pertença aos princípios que regem a formalização da espécie. Pode-se pensar que nisso o escottismo se inclina no sentido agostiniano uma vez que este, para defender o destino sobrenatural da alma, deve conceitua-la como indivíduo perante Deus, negando assim a tese tomista da individuação apenas pela matéria.
Vimos que, quanto a isso, o cristianismo avançava sobre as concepções demasiadamente formais da alma na filosofia grega. Mas por isso mesmo seria algo contraditório esperar que a doutrina tomista da individuação comportasse uma tal limitação. Assim é também sustentado pelo tomismo, como vimos, a tese da alma como substância espiritual incorruptível.
Gilson mostra que essa concepção estritamente cristã, vinculada à ressurreição, pôde ser dogmaticamente sustentada a partir de uma modulação da concepção platônica de alma. Mas com a introdução do peripatetismo na ambiência do monoteísmo, o problema de inserir a noção de alma como forma do corpo tornou-se central e constituiu o mais agudo ponto de controvérsia da crítica agostiniana ao tomismo.
Avicena havia resolvido o problema pelo modo de considerar. Em si a alma é substância, em relação ao corpo é forma. São Tomás elabora uma resposta que dota a alma humana de uma particularidade inigualável até aí. A alma como substância espiritual é “substância intelectual”, mas composta de forma e ato de ser. A própria forma é potencial em relação ao ato pelo qual a alma é. Assim, como vimos, a forma que a alma humana é não se confunde de modo algum com a forma dos outros seres ou coisas.
Se no restante dos entes o ser da forma é o todo do ser, a alma humana apresenta algo mais que forma, possuindo ela mesma o ato de ser que a constitui substancialmente. O corpo é sujeito de sua alma já que nela encontra-se essência mais existência. A alma intelectual, no universo de São Tomás, é como que a fronteira entre as coisas incorpóreas, como os anjos, e as corpóreas.
É a teoria da unidade do intelecto humano. Enquanto apoiada na dualidade de agente e possível, a operação do conhecimento está ainda na materialidade ou no domínio empírico, dependendo dos sentidos. Mas a alma, em São Tomás, é pensada ao modo de inteligência, unidade intelectiva, de modo que as faculdades de nutrição e locomoção, por exemplo, não se acrescentam como tantas almas ou formas distintas mas são reportadas ao inteligível como possibilidade de sua atuação. Essa teoria encontra severa crítica a partir da postulação do agostinismo, sustentada, por exemplo por São Boaventura, da pluralidade de formas.
Ora, como mostra Gilson, o problema a partir daí não será o de provar a incorruptibilidade da alma que se deriva por si a partir de que pode ser concebida como “substância intelectual”. Já esta deveria ser a função da espécie inteligível. A alma, sujeito de conhecimento, torna-se aquilo que ela conhece, mas não se transforma no sentido material. O caráter imaterial do ato de pensar é garantido nisso pelo que a alma “sabe” a multiplicidade de coisas que apreende mas não se torna materialmente essas mesmas coisas. E enquanto as outras formas apenas atualizam a matéria, a alma conhece.
Portanto a preocupação de Duns Scott em assegurar uma doutrina do ser humano abarcando algo mais do que apenas “a forma do corpo” é mais propriamente cristã e coerente com sua época do que propriamente agostiniana ou tomista. Contudo ela se estende no sentido de pensar o ser humano como algo mais do que simples diferenciação numérica, material, da espécie.
Pode-se observar que em São Tomás essa teoria da individuação se completa, por assim expressar, com a teoria da alma como substância espiritual dotada com seu próprio ato de ser. Já se está na esfera do sujeito autônomo enquanto a tendência agostiniana de São Boaventura, por exemplo, acentua o papel passivo da matéria que compõe toda criatura.
Propõe-se também em São Boaventura, como vimos, a pluralidade de formas – a luz, por exemplo, que se acrescenta ao composto substancial para torna-lo ativo, ao invés da completude apenas formal - material da substância que ao agostinismo parecia demasiadamente independente de Deus e do dogma.
Nesse caso o algo mais que a alma deve ser no plano da criação comporta na verdade um algo menos por relação ao criador. A natureza mesma deve apresentar essa limitação pois contra a “edução das formas” da matéria por um ser já em ato, conforme o peripatetismo, afirma-se a teoria das razões seminais pelas quais o ser em potência contém já as formas que a influência do ser em ato vem apenas tornar manifestas.
E se São Boaventura pode ainda conservar a interpretação tomista da intelecção, reservando ao intelecto agente apenas a capacidade abstrativa, termina por afirmar que essa capacidade é apenas favorecida pelo agente e realmente efetivada pelo possível mas afirmando concomitantemente que a luz natural que há em nós permite postular um conhecimento todo “intuitivo” que não depende do elemento sensível mas sim de Deus, conforme a teoria da iluminação.
Quanto à novidade do escotismo, consiste em considerar essa alma do tomismo que é intelecto autônomo como algo ainda mais autônomo do que simplesmente intelecto. Observe-se que a relação entre fé e razão deve inicialmente liberar, em Duns Scott, a razão da tarefa de comprovar aquilo que é afirmado pela fé. Criação, atributos divinos, imortalidade ou sequer existência da alma, tudo isso é agora tão somente artigo de fé. A autonomia da razão em seu domínio, que no tomismo se afirmava para depois fazer associar à fé, parece mais uma vez radicalizada como independência de um exercício filosófico doravante desvinculado da teologia.
O que se dá a pensar no escotismo efetivamente é o sujeito, este ser humano aqui, não a alma ou o ser humano como exemplar indistinto de uma espécie. Todavia, ele é pensável como o que se individua dessa espécie.  Terá, em todo caso, esse novo dado a pensar algo a ver com a crescente fragmentação da unidade da igreja, da autoridade papal, ao par do desenvolvimento de novas formas centralizadas de poder temporal?
Estar-se-ia reservando desde já o novo lugar do rei que será o moderno Estado-nação, prefigurado pelas alianças entre príncipes e doutores dessas universidades a que Carpeaux reporta a origem do termo “nação”?  Ao invés de uma coincidência fortuita com o termo que se usava nas faculdades medievais para designar cada especialidade a cursar, a "nação" estatal nasce efetivamente da sustentação ideológica fornecida a essas novas lideranças políticas centralizadas pelos intelectuais que aí se profissionalizam , enquanto o poder espiritual conta com a autoridade eclesiástica..
Em Duns Scott a unidade do intelecto não separado se torna postulável do sujeito mas não o define enquanto alma apenas como faculdade de conhecer. A unidade do sujeito se volta ao princípio essencial mesmo, não dependendo do ato existencial, é verdade, mas inversamente a reconstituir-se o idealismo da essência separada que só permite pensar o indivíduo por sua deficiência no sentido da queda – metempsicose ou simplesmente o ser criatura – o que se pretende é assegurar-lhe tanto de cognoscibilidade quanto possui a forma mesma.
Isto é, propõe-se que há forma, matéria e sujeito individual, três realidades postuláveis em si mesmas. O indivíduo não se constitui como composto de matéria e forma, um tipo de resultado, mas como algo irredutível a tudo mais, existente e pensável de modo que se pode afirmar a “socratidade” independente da existência atual de Sócrates. A essa unidade do individual, que se propõe com Duns Scott, designa-se “haeceidade”.
Já a matéria, nem comportando as razões seminais do agostinismo como princípio interno de aspiração à forma, nem existindo apenas na potencialidade da forma que a atualiza, como no tomismo, é afirmada no escotismo como atual em si mesma.
Esse sujeito eterno , que se afirma como “haeceidade” no escotismo, é sujeito de vontade e só de modo derivado vem a ser de conhecimento. “Espécie especialíssima”, é a contração da essência nesse ente aqui. Trata-se do voluntarismo, a tese escotista pela qual, inversamente ao princípio tomista pelo qual a vontade obedece ao que o intelecto aprova, é a vontade que comanda, orientando o entendimento a este ou àquele objeto.
A vontade é causa livre da volição, quer o que quer porque quer, independente do princípio intelectivo. Assim acentua-se também a tese tomista da liberdade em Deus, isto é, aquela afirmação da não necessidade da criação. À questão de porque Deus criou o mundo, Duns Scott responde, conforme Gilson: Deus, que é amor, ama sua perfeição a ponto de querer que haja seres que também a amem, desejando assim criar o mundo. Seu querer é criar e se o mundo é racional, assim Deus o quis, ao invés de se afirmar que Deus quis este mundo porque este é o mundo racional.
Tanto quanto se pode ver que há causalidade livre em Deus, do mesmo modo que nas criaturas, desfaz-se também o fundamento analógico afirmando-se inversamente a univocidade do ser que se reporta agora igualmente a Deus e às criaturas.
O que se observa é que o ao sujeito estendeu-se a exigência do pensar, não mais como detentor de um papel na economia da criação, nem mesmo como atuando um processo intelectivo, mas como realidade autônoma que deve propor as suas próprias questões. Vemos desenvolver-se aí a concepção do amor que se relaciona também, de certo modo, à valorização platônica que nessa época se opõe ao ideal de conhecimento puro do tomismo, afirmando que o amor é mais importante do que o conhecimento intelectual.
Contudo, enquanto a argumentação do platonismo agostiniano se orienta no sentido de postular o amor como união com Deus, no sentido da fé, a convergência desse novo lugar do sujeito dado a pensar do escotismo tem mais a ver com esse “sentimento novo” que Carpeaux registra desde “o trecento”, e que é desconhecido até então.
Reunindo numa mesma mística de “élan vital”, a  paixão erótica, o ideal espiritual e o pensamento filosófico, esse sentimento de amor é aquele que inspira o romance cortês no cenário dos gêneros nascentes nessa época: a lírica pessoal, a pastoral e o conto. Examinando-os observa-se que esses gêneros correspondem a formas autênticas de expressão subjetiva. Como enfatiza a expressão de Bréhier, o amor se torna agora o “motor da vida superior”.


8 )


                                                                            Rabelais: a literatura e a filosofia


Relacionado ao amor, como questão desse novo sujeito dado a pensar, está o riso. E como observa Bakhtin, história e filosofia do riso tornam-se bastante aplicáveis à tarefa de compreender o Renascimento.
Inicialmente é preciso deslocar o foco de observação que vínhamos mantendo sobre o período feudal. Assim, desde o estudo da cultura oficial que a filosofia escolástica desenvolve, devemos nos aproximar agora da cultura popular.
Historicamente, a delimitação dessas duas regiões culturais se apresenta de dois modos possíveis de relação. Ou esses elementos se distanciam, não se misturam ainda que coexistam no interior de um mesmo complexo social, ou há continuidade entre eles de modo que nas formas da alta cultura se podem encontrar aspectos precisos da cultura popular.
À época feudal coexistem, conforme Bakhtin, dois aspectos de mundo. Ao mostrar que esses dois aspectos recobrem o popular e o oficial Bakhtin equaciona ao mesmo tempo o popular medieval ao cômico-grotesco rabelaisiano do Renascimento.
Assim como as páginas dos manuscritos da época de Duns Scottus e São Tomás se povoam de ilustrações fantásticas “de inspiração livre”, inúmeras figurinhas sem relação com o texto cuja descrição de Bakhtin faz lembrar os quadros de Hieronimus Bosch, na consciência do homem feudal participavam os dois aspectos do mundo, o piedoso oficial e o popular carnavalesco.
Mas esses aspectos superpostos jamais constituíram no feudalismo uma via única. Eram princípios opostos de modo que a irrupção “legalizada” do cômico se reservava ao calendário festivo sendo tolerada assim como um procedimento de catarse, purgando a inclinação irracional da alma humana.
Pode-se assim afirmar que no contraste entre culturas oficial e popular no feudalismo, enquanto aquela o representava exemplarmente como concepção imobilista e hirárquica do mundo, com esta se anuncia no interior mesmo da época medieval uma “verdade popular” que é fundamentalmente “antifeudal” naquele sentido oficial do termo.
O que ocorre no Renascimento segundo Bakhtin é a ascenção dessa cultura popular, e conseqüentemente do cômico, à esfera da grande literatura. Bakhtin relaciona esse fato ao sentido agudo da percepção histórica da época, isto é, à consciência de que um velho mundo estava desaparecendo, à sensação do novo.
          Já o cômico popular do período feudal se constituía como compreensão alegre da finitude e da renovação como interposições onipresentes da natureza, integrando o elemento da materialidade e da mudança, do tempo e da alternância contínua, no devir.
Havia uma conveniência dessas formas cômicas populares, portanto, na expressão das perspectivas do Renascimento, enquanto que, paralelamente, o período se institui por uma tradição de ruptura com a cultura oficial medieval. O que é compreensível, pois o que a cultura oficial do feudalismo oferecia eram formas conceituais aptas apenas a expressar a concepção de universo e sociedade imutáveis, estabelecidos eternamente do mesmo modo por Deus.
Enquanto as formas descritas por Bakhtin de expressão do cômico popular – a anedota, o carnaval, as formas do linguajar da praça pública, o calendário festivo, o caráter comunitário das feiras, por exemplo – evidenciavam os aspectos relativos e transitórios do devir ao mesmo tempo em que subvertiam as fórmulas da autoridade instituída através da linguagem “livre e ousada” capaz de fornecer o “conteúdo positivo mais rico às novas concepções de mundo”.
Com efeito, conforme Bakhtin, a época do Renascimento interessava-se sobremaneira por formas que pudessem possibilitar as máximas “franquezas de pensamento e palavra” que “procuravam a realidade nova "ultrapassando o “horizonte aparente” das concepções dominantes. A palavra devia agora revelar o que o costume e a convenção mantiveram sempre oculto.
Esse sentimento do novo se torna bastante evidenciado. Nessa época ocorre uma quantidade de transformações que afetam profundamente as doutrinas previamente estabelecidas sobre universo, ser humano e sociedade. Um erudito da geração anterior, confrontado a um aluno em seus inícios escolares, pareceria desinformado. Mas uma observação de Bréhier sobre Montaigne permite que se alcance o sentido mais próprio do período.
Trata-se do espanto da razão, a confrontação com os outros povos do mundo, a descoberta do heterogêneo puro. Paralelamente ao desenvolvimento das descobertas das leis naturais se torna patente a irredutibilidade das culturas. Não há “uma” razão que, à maneira estóica, possa servir de referência universal. O choque intercultural mostra, inversamente, que o espírito humano é como um grande “inventor de milagres”, que há inúmeras possibilidades de crenças, explicações de mundo e linguagens, não apenas aquelas conhecidas no velho continente.
E já no interior mesmo da cultura européia a desagregação do lastro do latim como língua oficial em proveito das línguas nacionais antepõe o fenômeno trilíngüe – latim medieval, língua nacional, latim clássico que se quer restaurar – ressaltado por Bakhtin.
 Se a fronteira de latim e língua nacional demarcava até aí o limite entre as culturas oficial e popular, paradoxalmente a intenção filológica do Renascimento em purificar o latim medieval através da reorientação pelo latim clássico, o de Cícero, determinou a impossibilidade do seu uso disseminado concomitantemente à universalização da linguagem da praça pública, veiculando os pontos de vista e formas novas de pensamento que até aí se reservavam aos gêneros inferiores como pregões, farsas e comédia.  As fronteiras culturais que descobria-se agora demarcando a irredutibilidade da diferença não se reservavam ao distanciamente espacial, mas abarcava o tempo, as épocas, a própria história.
Assim o ilustra a descoberta pirrônica de Montaigne, conforme Bréhier. A ciência não concede o acesso por si mesma a uma região superior da humanidade, mas seu valor depende do seu uso. O valor da ciência é relativo àquele do ser humano que a emprega. Se “o homem” se torna o objeto mais proeminente de estudo, ele não se visa como “natureza humana universal” mas sujeito que se descobre a si mesmo “puro” frente ao mundo, isto é, fundamentalmente desconhecido de si mesmo, não já determinado por leis e predestinações asseguradas de antemão.
É a própria interioridade que se torna opaca uma vez que não há certezas disponíveis. Sob o verniz dos costumes, o fundo do espírito, como afirma Montaigne, é vagabundo e flutuante. Estudando o seu próprio “eu” Montaigne nada vê de previamente estabelecido. É somente na experiência, em contato com as coisas e com as pessoas, que se pode atingir algum conhecimento, relativo é verdade, de si mesmo, mas que serve à condução da existência na positividade do devir.
Essa concepção “cética”, mas renascentista, não propriamente antiga, tem bastante afinidade com o riso rabelaisiano profundamente afirmador da vida. Pois não se trata de constatar a falência do mundo feudal sem compreender que o que o inviabiliza é infinitamente mais poderoso. A constatação é, pois, alegre. O tempo novo é alegre, esse é o capítulo da história da filosofia do riso em que ele não se dissocia da noção de verdade. Montaigne procura ainda nos livros “o prazer do divertimento honesto", enquanto mais tarde a modernidade clássica vai introduzir uma relação fundamental de verdade e seriedade, riso e superfluidade.
O dogmatismo da sociedade imobilista, a unilateralidade de uma concepção de mundo imposta como verdade universal, havia povoado a consciência com as intimidações, os dogmatismos, a hipocrisia. Nessa concepção pré-moderna, o riso expurga todos os sentimentos que “mascaram o conhecimento da vida” mantendo assim uma relação essencial com a verdade. Rabelais, conforme Pinski, citado por Bakhtin, é o “pensador” que visa a relação entre o riso e o conhecimento. Ocorre que essa “verdade” é a do ser humano, do espírito que apreende os aspectos cambiantes, relativos e alternantes do real em si mesmo. O físico e o espiritual não mais se exluem. São elementos que se alternam assim como os pares de opostos e os valores no tempo, nessa vertente intelectualizada do pensamento popular.
As fontes teóricas da filosofia do riso como meio de compreensão do mundo à época de Rabelais, enumeradas por Bakhtin, são Hipócrates, Aristóteles e Luciano, o autor do “Menipo”. Se o exame da influência de Luciano se joga mais no plano teórico literário, interessa-me aqui especialmente a convergência de Hipócrates e Aristóteles.
Enquanto o Estagirista observa que o riso é o próprio do ser humano, as concepções hipocráticas relacionam-se à Demócrito em que o riso expressa uma concepção filosófica do mundo, como intuição espiritual do ser humano que desperta triunfando sobre temores derivados de superstições infundadas. Rabelais, reunindo Hipócrates e Demócrito, havia efetivamente realizado exposições na Faculdade de Medicina de Montpellier sobre sua teoria da “virtude curativa do riso”, teoria em voga numa época que reservava à medicina e à astronomia a preponderância entre as ciências.
Essa convergência estritamente filosófica insere-se plenamente na “corrente das idéias humanistas” do Renascimento. Pois não seria algo como uma prática terapêutica estritamente “científica” como situável no interior do quadro já completamente moderno da especialização que separa o domínio natural positivo do âmbito da autocompreensão do próprio ser humano.
Ora, quanto a isso a observação aristotélica da humanidade do riso é essencial, pois trata-se no Renascimento da possibilidade de algo que Bakhtin designa como “concepção do mundo cômica” ou “aspecto cômico universal do mundo”. Esse aspecto precisa então integrar, a priori, o fato de ser humano, não ao modo de um conhecimento “objetivo” ou neutro dos fatos.
 O riso abre o mundo “humano”, mundo que ainda não se absorveu nas leis de uma Mathesis Universalis mas que expressa perfeitamente o paradoxo como sentido existencial pleno, lugar em que o profundo senso do cotidiano que impregna as formas da comicidade popular não são ainda a esfera do privado que localizará o cômico burguês da modernidade clássica.
Assim se Pinski, conforme Bakhtin, capta a “relação imemorial” entre o riso e a alternância temporal, parece-me oportuno observar que entre as situações cômicas analisadas por Bergson, as que mais se aproximam da obra de Rabelais são as de inversão e de interferência de séries. Respectivamente, a troca de papéis: coroamento do tolo, coincidência do horóscopo do bufão e do rei, utilização chula ou irreverente de elementos habitualmente sacralizados, glutões e ébrios mais sábios e lúcidos que o intelectual típico. E as associações inesperadas: sombra da igreja que fecunda mulheres, muralhas da cidade formadas pelos próprios habitantes.
Mas de modo inverso ao cômico burguês dos exemplos de Bergson, sente-se nesse conteúdo rabelaisiano mais do que o exagero, algo como a derrubada das fronteiras que ao invés de somar ou encadear noções provindas de regiões diversas do real, fazem interpenetrar aquilo que se mantem ou deveria se manter expressamente disjunto.
A interferência não incide jamais sobre séries quaisquer, mas o efeito grotesco supõe que essas séries sejam forçosamente imiscíveis. Ora, no Renascimento, como mostra Bakhtin, ocorre uma “assimilação dos elementos cósmicos nos elementos do corpo”. A relação de macro e microcosmos não se fazia ao modo da representação simbólica mas como corporificação, ato de conferir o sentido de si, do corpo próprio e seus processos fisiológicos, como idênticos à materialidade dos elementos.
O corpo humano se torna o centro em que se reúne a heterogeneidade do mundo novo, o universo infinito que substitui o geocentrismo das esferas delimitadas. A espacialidade se torna horizontal comportando relações de movimentos para trás e para a frente ao invés da verticalidade pura do gótico. A horizontal do tempo se desloca inexoravelmente do passado ao futuro.
É inevitável recordar o modo como Santo Agostinho conjurava sua própria descoberta do tempo anímico, orientado pela expectação do futuro, através do tempo teológico que era a personificação da imutável ordem do claustro apta a reproduzir a hierarquia dos espíritos e a eternidade do tempo da criação através da estabilidade institucional eclesiástica. Comparando essa concepção com a de Pico della Mirandola, assim como observada por Bakhtin, vemos que o conceito de humanidade, agora , impede completamente a possibilidade de subtrair-se ao tempo do futuro.
O ser do humano, em Pico della Mirandola, é existência e futuro pois enquanto tudo o mais tem uma natureza completa e imutável, como única semente a partir da qual se desenvolve, os seres humanos recebem as sementes de todas as vidas, tendo então que escolher o que neles se desenvolverá: vegetal ou animal, anjo ou filho de Deus, há liberdade de escolha. O corpo humano reúne todos os elementos e reinos da natureza, pois o ser humano é aquele que escolhe, no devir histórico, o sentido de sua existência.
E o paradoxo já se instala assim nessa concepção do cômico popular em que tudo o que há de mais oposto se interpenetra, não apenas se toca. Bakhtin ressalta os elementos de ambivalência e hiperbolização que afetam o cânon do corpo renascentista rabelaisiano. O corpo cósmico que acentua as funções fisiológicas capazes de turvar toda delimitação de exterior e interior, movendo-se sempre na continuidade, acontecimentos de membranas, subverte o sentido da necessidade material no cômico ao projetar-se parcialmente, hiperbolizando alguma parte ou função que se torna repentinamente autônoma.
A própria linguagem popular é ambivalente, de dupla tonalidade, o que se traduz pela interpenetração freqüente de séries injuriosa e elogiosa sobre o mesmo objeto. Esse aspecto se reencontra na literatura bíblica em que o efeito retórico é alcançado ao se estender do mesmíssimo modo a série de castigos ou recompensas que têm lugar conforme a inobservância ou a observância da lei instituída – não se trata de simplesmente “informar” sobre conseqüências, mas o contraste é estilisticamente explorado.
Observa-se a correção da perspectiva de Bakhtin sobre o enraizamento feudal, não tanto antigo, da matriz formal ou prática do cômico renascentista. Quanto a isso, Bakhtin insiste na impossibilidade de assimilar, por exemplo, o cômico rabelaisino ao satírico, apesar de uma certa resonância de formas com o treatro antigo, como a do ágon.
Nessa época o humanismo cristão esforçava-se por reestabelecer o cristianismo primitivo, purgado da oficialidade das fórmulas institucionalizadas da igreja. Podemos aqui recordar que o paradoxo constituía uma das chaves desse cristianismo primevo que parece ter se perpetuado na cultura popular. O paradoxo não coincide exatamente com as formas do cômico clássico antigo onde a subversão cômica se faz mais pela colocação lado a lado ou pela inversão simples que no entanto mantem os lugares sociais bem delimitados.
Se o paradoxo irrompe na sofística, observa-se nela aquela acentuação singular à época em que se desenvolve, acentuação justamente humanística, em que é o sentido da compreensão humana, o Nomos, que se torna o que se dá a pensar. Pode-se inclusive propor que as formas de recepção da sofística posteriores ao século V ac. apresentam o mesmo deslocamento da compreensão do seu sentido que as do cômico rabelaisiano renascentista em relação à modernidade.
O que os textos antigos que a recepção ampliada pelas traduções fornecem ao mundo do Renascimento propiciam é uma tomada de consciência da época a respeito de seus próprios arredores, por assim expressar, conforme Bakhtin. E esse é a meu ver o sentido da recepção histórico-crítica do humanismo em relação à literatura clássica antiga. Ao mesmo tempo em que se procurava libertar os textos das sobreinterpretações espúrias dos códigos instituídos pelo dogma, procurava-se também no próprio acervo da cultura o que se havia semeado às costas da oficialidade de modo a instaurar-se uma prática real e atualmente válida das formas do cômico popular.
O sentido existencial pleno dessa prática estava no mundo da vida, mas assim como poderia ser visada no âmbito dessa compreensão instauradora do riso conexo à revelação da verdade que é paradoxo. A situação cômica por excelência é também a do inesperado como a do “boneco de mola”, registrada por Bergson, que salta da caixa sem que se espere que algum conteúdo ali pudesse apresentar qualquer capacidade de ação ou movimento.
A existência estava povoada dessa experiência, à época do Renascimento. Continentes e povos desconhecidos, o sol central e a terra girando em torno, novidades matemáticas, inovações terapêuticas, descobertas de todo tipo, e já  a visão popular sabia penetrar com naturalidade o caráter insólito do real, a impermanência característica do devir, a coexistência do mal e do bem impossíveis de cindir-se em traços nitidamente destacados.
As funções materiais, corporais, são agora consideradas essenciais à preservação das funções sublimes, espirituais, por exemplo, ou a situação de alternância onde o fim de um ciclo é pressuposto ao início de outro. A constatação do mais inesperado no interior daquilo que é o mais familiar é o aporte propriamente humano da descoberta da existência como sendo ao mesmo tempo seu próprio motor e finitude. O papel central do corpo é também a consciência aguda dessa finitude constitutiva.
Esse riso que abre o mundo subjetivado, se bem que não ainda se pense o sujeito das "ciências humanas",  comporta algo de irredutível ao momento posterior que se inicia no século XVII, a partir do qual já não se situa a compreensão de Rabelais no interior do seu próprio universo de sentido, daí os deslocamentos das interpretações analisadas por Bakhtin no âmbito da recepção moderna e contemporânea da obra rabelaisiana. O que poderia parecer algo insólito se considerarmos que é à época de Descartes que se desenvolve precisamente o panorama da filosofia do sujeito, mas isso se compreende bem se notarmos que essa filosofia do classicismo cartesiano é apenas a da consciência racionalista.
Muito da argumentação de Bakhtin reside na comparação do Renascimento com esse momento posterior de modo a ressaltar a incompreensão que nele se manifesta quanto ao aspecto filosófico do riso rabelaisiano. Assim por exemplo a descrição do cânon corporal moderno em relação ao renascentista. No cânon moderno a corporificação é um negócio de fechamento, delimitação, superficialidade como fronteira nítida de interior e exterior que impede as interpenetrações, ambivalência e hipérbole, do cômico de Rabelais.
           É a observação de Montaigne protestando contra as novas restrições que os costumes já estavem impondo ao ímpeto liberalizante da linguagem do Renascimento. Conteúdo e expressão de um novo plano, o da estratificação do sujeito-consciência "moderno", isto é, do período classicista.
Incide também aqui o problema periodológico do Renascimento, não-feudal, não-moderno de todo. Prolongando a cultura popular do passado, antepondo oficialmente antiqui e moderni – perpetuadores das discussões escolásticas que vão se estiolando e autores de uma nova visão da liberdade filosófica e especulativa – mas sobretudo humanistas, envolvidos com essa compreensão de mundo jogada na abertura da própria individuação. Quanto a isso, dobrando-se a cesura, reencontra-se o século XII no século XIV, a retomada do espírito chartrense em plena tarefa de superação da escolástica.
O que ocorre é que nesse plano de centralidade corporal, nesse mundo de semelhanças e influências universais, o sujeito não tem o caráter de generalidade, não é propriamente o “ego cogito" cartesiano, forma geral de individualidade. Não se deveria mesmo, talvez, falar de “sujeito”.
Entre a alma como unidade intelectiva do tomismo e a hecceidade escotista o que muda é a referência do humano conforme o seu lugar específico no plano da criação em favor da singularidade como dado a pensar na efetividade do seu vir a ser esse-ente-aqui. Mas precisamente o corpo-microcosmo não se delimita por oposição ao universo ou ao outro, ele se constitui por sua inserção no mundo e interação material. O que garante o acontecimento-apropriador existencial que é abertura do sentido. Contudo, a individuação não se faz ao modo da pessoa, sujeito, coisa, forma, substância.
Há somente conjunção de afetos (latitude) e reunião de elementos materiais (longitude), intensidade e variação entre relações de movimento e repouso. Se essa cartografia é espinozista, a hecceidade é já o conceito escotista que insere a individuação no plano da vida, que não se confunde com o do "sujeito” cartesiano.
A hecceidade é contração de essência ou grau de potência, na leitura de Deleuze, tom de brancura e grau de calor, designando-se sempre como positividade plena ao invés de diminuição do ato puro. Assim só há existência onde o ato é agenciamento, “independente da forma de seu conceito ou da subjetividade de sua pessoa”. A hecceidade é acontecimento que torna singular – o momento, a vida de Sócrates, o passeio, a estação, o clima, o vento, o bando de animais, mas de maneira que tudo o mais, o mundo inteiro, se precipita nisso que se tornou singular. É a concepção ek-sistencial pela qual isso, o cão magro que corre na rua, é a rua, na visão de Virginia Woolf.
A essência se contrai, mas a essência só pode ser tudo isso que ela é. A “socratidade”, o sujeito eterno, não seria sujeito de todo no sentido de algo que não é nada mais que somente ele mesmo. Mas tampouco é a generalidade do ser que pode, de outro modo, ser visado particularmente. A neutralidade da essência em Duns Socott abarca o universal tanto quanto o particular. Mas a socratidade, como a hecceidade, como os acontecimentos desse corpo microcósmico do Renascimento, não seria “acontecimento” sem ser também “sentido” – daí seu caráter de modo algun contingente mas eterno. Mais propriamente a-crônico, aiônico, ainda não tendo vindo, sempre já tendo sido.
O eixo ético-político em que se observa a consolidação ideológica do Estado absolutista e o eixo epistemológico em que se vê a Metaphysica generalis transformar-se em Mathesis Universalis, conforme a expressão de Chauí, são as balizas que demarcam a transição desse plano contíguo feudal-renascentista ao mundo "moderno" a partir do século XVII. Aprecia-se desse modo a continuidade imanente ao que é, contudo, o devir da filosofia, isto é, na mudança de planos a historicidade do conceito.

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                                                                                                              3 / 12 / 2011

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